05/08/2017

A pior ofensa, o melhor elogio



Ao Manuel, ao Tiago e à Meru.

Algumas coisas que nos são ditas assemelham-se àquela vetusta gravura em que podemos ver alternadamente uma velha decrépita de nariz adunco e o perfil de uma jovem glamorosa, altiva. Não me refiro a observações equívocas, de duplo sentido ou infectadas pela ironia, isto é, frases que significam simultaneamente uma coisa e outra coisa, mas a declarações que, a princípio, possuem um valor e, a dada altura, adquirem outro, porventura contrário, podendo ainda, mais tarde, vir a reaver o primeiro, rasurando o que lhe sucedeu — e essa reversibilidade não é endógena à proposição, dependendo antes do seu destinatário. Indemnizo o leitor desta estopada preambular com um exemplo catita. Há uns anos atrás, um amigo mais velho cuja inteligência implacável e sentido de humor (assaz escarninho) grandemente admiro, disse-me: «O Pedro daria um fantástico professor de liceu.» A natureza afável e o rumo da conversa não me autorizavam a imputar qualquer intenção malévola ou depreciativa a este comentário, mas senti que ele me entrava como espada na coragem — vulgo, auto-estima —, pois desde os meus vinte anos que ambicionava esse laureado (e um pouco risível) estatuto de professor universitário, tendo, de facto, iniciado o meu percurso profissional como assistente de um catedrático de Letras, ainda que num instituto superior que mais parecia uma caserna prussiana de baixo coturno. (Uma voz que tantas vezes tento abafar sussurra-me, censória: «Não precisava de ser ‘prussiana’, bastava ser ‘caserna’.») Mais recentemente, voltei a dar aulas — de novo, no ensino superior. A relação que pude estabelecer com os meus alunos (ou com parte deles) fez-me desejar tê-los conhecido mais cedo, aos 14 ou 15 anos. Não porque sentisse, arrogantemente, que chegava demasiado tarde à existência daqueles aprendizes de feiticeiro e que já nada poderia fazer perante a extensão dos estragos causados pelo ensino obrigatório. Mas talvez porque o que realizámos em conjunto se revelaria mais formativo ou, pelo menos, mais proveitoso alguns anos antes. Quando isto se me tornou claro, aquilo que, há muito tempo atrás, me havia parecido um agravo converteu-se num sinal de genuíno apreço. A pior ofensa pode talvez revelar-se o melhor elogio.