20/08/2017

«Alma bem-aventurada, dos anjos tanto querida»

Alma amparada pelo Anjo, rumo à «pousada verdadeira».
encenação Nuno Carinhas (TNSJ, 2012); foto João Tuna

«Gil Vicente é o mais Anjo e o mais Demónio dos poetas portugueses», escreveu Teixeira de Pascoaes, acertando em cheio. Curiosamente, lembramo-nos mais dos seus diabos (de facto, em Vicente encontramos o inteiro repositório das feições que o diabo foi adquirindo, incluindo aquelas com que o demónio assoma em obras como as de Kafka e Walser) do que dos seus anjos, que têm tanto que se lhes diga. Eis um deles, saído desse drama singularíssimo que é o Auto da Alma. Tanto quanto sei, não se encontra em todo o teatro medieval europeu outro drama de uma Alma. A thing of beauty.

ANJO:
Alma humana, formada
de nenhũa cousa, feita
mui preciosa,
de corrupção separada,
e esmaltada
naquela frágua perfeita,
gloriosa.

Planta neste vale posta
pera dar celestes flores
olorosas
e pera serdes tresposta
em a alta costa,
onde se criam primores
mais que rosas.

Planta sois e caminheira,
que ainda que estais vos is
donde viestes.
Vossa pátria verdadeira
é ser herdeira
da glória que conseguis:
andai prestes.

Alma bem-aventurada,
dos anjos tanto querida,
não durmais;
um ponto não esteis parada,
que a jornada
muito em breve é fenecida,
se atentais.

Gil Vicente – Auto da Alma (1518)