18/08/2017

Meu zeloso guardador

Alguém me contou que todas as noites, ao adormecer, dirigia ao seu anjo-da-guarda uma prece que a mãe lhe ensinara quando era criança. Com a minha típica arrogância calvinista, atribuí esta prática ao obscurantismo bíblico em que tantos católicos se autocomprazem, recreando-se num sincretismo morno: consulta-se o horóscopo à hora do almoço, compra-se uma velinha em forma de buda (com o pavio no cocuruto) ao final da tarde e, à noitinha, profere-se uma reza que também a prole de Allan Kardec perfilha. Na ocasião, não censurei a minha amiga, mas o meu sorriso condescendente terá dito a meia palavra que lhe bastava. Contudo insatisfeito, voltei ao assunto dias depois — e pedi-lhe que me recitasse a oração. Para minha surpresa, fê-lo naquele instante. Era, como eu imaginava, uma oração singela, uma versão provavelmente truncada de uma antiga oração ao anjo-custódio. Todavia, a prontidão e a candura com que aquela mulher partilhou comigo a sua oração desarmaram-me. Senti-me envergonhado — em parte por rever em mim a fisionomia daquelas personagens de Flannery O’Connor que desdenham de gente que não tem uma «religião avançada», uma religião purgada de baboseiras, desimpedida de inútil bricabraque: em suma, uma «religião reformada». Mas a funda razão da minha vergonha prendia-se com outra coisa: não ser capaz de me lembrar da última ocasião em que partilhei uma oração com alguém, sem precisar de invocar uma justificação teológica ou literária, como por vezes sucede em aulas ou em ‘ensaios de mesa’ com os actores. Continuo a pensar que, no plano da teologia bíblica, a proliferação de intercessores — Virgem, santos, anjos e toda a corte celestial — redunda na dissolução do papel de Jesus Cristo como único mediador entre Deus e os homens (cf. I Timóteo 2:5 e João 14:6). Ainda assim, estranhamente, espero que esta noite a minha amiga não se esqueça de fazer a sua oração.

Agora que volto a pensar nestas coisas, lembro-me de Dietrich Bonhoeffer, o pastor luterano que foi enforcado aos 39 anos no campo de Flossenbürg por ter participado na conspiração que culminou no atentado falhado contra Hitler. A pedido dos seus companheiros na cadeia militar de Tegel, escreveu «orações para presos». Era um dos maiores teólogos do século, e ali estava ele, compondo breves preces matutinas e vespertinas — e «orações para momentos de especial aflição». É um pouco como pedir a um génio da física nuclear que ensine os rudimentos da aritmética a crianças do primeiro ciclo. E, no entanto, o amigo e confidente Eberhard Bethge concluiu que toda a teologia e toda a espiritualidade de Bonhoeffer foram decantadas nessas orações muito simples — escritas para serem partilhadas.