24/08/2017
Visitações
Os factos reportam-se aos primeiros anos do século XXI. Anos
de chumbo: a Baixa esvaía-se de gente por volta das oito, o comércio encenava
nas montras a sua ruína e a sua melancolia, os turistas não eram ocidentais —
eram acidentais, gente que vinha ao engano. A Praça da Batalha não passava de
um ícone lumpemproletário: a praça de A hora em que não sabíamos nada uns dos outros, mas frequentada apenas por
criaturas de procedência duvidosa: escroques, delinquentes, carteiristas,
velhas putas, escrevinhadores pardacentos, fantasmas constipados. A Rua
Alexandre Herculano era a mais poluída artéria do coração da Baixa, albergando
uma garagem lúgubre da Rodoviária Nacional. Eu ocupava um escritório ao
lado, no último piso de um prédio soturno, viveiro mais que certo de negócios
ominosos, de actividades dúbias no que toca a higiene e fiscalidade. Nesses anos
— era isto que eu queria contar —, fui vítima de algumas tentativas de assalto.
Digo ‘vítima’, mas chutei com o pé que estava mais à mão, como diz o poeta. Na
verdade, não passaram de tentativas goradas de assalto. Vou isentar-me de
relatar por que infames expedientes me furtei sempre ao furto: levar a melhor
sobre um patife nem sempre implica audácia e valentia, às vezes pede o
contrário. (Como sucede frequentemente na procura de emprego, o excesso de
qualificações pode revelar-se contraproducente.) Embora estes assaltos tenham
sido conduzidos por larápios de feições e compleições diversas, dois deles
abordaram-me da mesmíssima maneira: o ataque
— na acepção musical da palavra — foi igual. Teriam a mesma escola, a mesma
proveniência, a mesma missão? Os meliantes declararam, à queima-roupa: «Eu
conheço-te.» Uma frase banal, que adquiriu aos meus ouvidos um efeito
estarrecedor. Ainda hoje estremeço se alguém me diz isto. «Eu conheço-te.» Um outro disparou esta tão pouco tranquilizante declaração: «Não tenhas medo.» Não
combati com qualquer deles e não lhes roguei a bênção no lusco-fusco da
madrugada, mas foram as experiências mais próximas que tive do que imagino ser
um encontro com um anjo.