01/01/2019

Natal de 2018


Ao Orlando.

Neste Natal, a Abigail e eu recebemos um daqueles presentes que nos lembram que todo o presente corresponde idealmente a uma doação de nós mesmos: investimo-nos nele, confiamo-nos através dele. Foi já no dia 27, quando nos preparávamos para deixar A-dos-Pretos e regressar ao Porto, que os pais da Abigail nos ofereceram uma peça em gesso, moldada pelo Tio José Pedro na primeira metade da década de 70, versando a Parábola da Ovelha Perdida, a primeira de duas histórias que, no Evangelho de Lucas, preparam o caminho para a mais bela e a mais escandalosa das parábolas: a Parábola do Filho Pródigo. Durante anos a fio, a peça morou discretamente numa salinha que deixou de ter uso quando os telefones se libertaram dos fios e passámos a atendê-los em qualquer parte da casa. (Agora, uma remodelação no piso térreo aboliu essa salinha do telefone onde a Abigail, há vinte anos, antes de vir estudar para o Porto, abolia a distância que nos separava.) Não vamos resvalar para um tolo confessionalismo, mas, quando o Pai da Abigail depositou esta peça nas nossas mãos, fui acometido pela sensação de que finalmente se cumpria o seu destino, a sensação de que – sem que o seu autor o pudesse prever – aquela peça fora criada para que, meio século mais tarde, nos fosse confiada, a nós, aderindo por inteiro à nossa experiência pessoal, íntima, e conferindo-lhe expressão, beleza e sentido.
O Tio Zé Pedro é, para mim, uma figura quase lendária. Não o cheguei a conhecer – ele morreu no início dos anos 80 e eu cheguei à família já no final da década seguinte –, mas ouvi falar dele várias vezes, sobretudo ao Avô Raul e ao meu sogro. É uma daquelas pessoas que fazem lembrar o ser de que fala um ‘ensaio’ de Borges: A Aproximação a Al-Mu’tasim. Podemos não chegar a conhecer essa pessoa de quem procede uma claridade divina, mas todos os que com ela se cruzaram tornaram-se portadores de centelhas espargidas por um grande fogo central. Assim foi o Tio Zé Pedro: um luzeiro. Na verdade, era tio-avô da Avó Ermelinda, a avó paterna da Abigail. Nasceu em A-dos-Pretos, freguesia da Maceira-Liz, em 1907. Homem de pouca instrução – o meu sogro recorda-se dos bilhetes-postais que ele enviava, enxameados de erros ortográficos –, o Tio Zé Pedro foi artesão e escultor. A sua cultura visual seria provavelmente incipiente (apesar de ter passado, certamente na condição de aluno externo, pela Escola de Belas-Artes de Lisboa), mas possuía uma sensibilidade rara, e um imaginário e uma mundividência cuja filiação me é difícil de determinar, mas que envolvia uma dimensão mística e messiânica a par de uma propensão bucólica, um lirismo telúrico e terno. A sua ingenuidade artística deixa-nos indecisos: é simultaneamente a naïveté que caracteriza o trabalho de todo o artista popular e autodidacta como aquela inocência que tem que ver com o pela primeira vez das coisas, a condição de se permanecer menino diante do mundo e da matéria.
Durante alguns anos, o Tio Zé Pedro fabricou santos, privando-se a si mesmo do seu meio de subsistência quando – na década de trinta, se não estou em erro – se converteu ao protestantismo. Corrijo: quando se converteu a Cristo. Foi uma espécie de pilgrim father na zona da Maceira-Liz e da Marinha Grande – um homem de coragem na desassombrada afirmação da sua fé num contexto social, religioso e até político fortemente adverso, talvez mesmo hostil. Os avós paternos da Abigail converteram-se também através do Tio Zé Pedro, e por ele adveio «uma tão grande nuvem de testemunhas» (Hb. XII,1) que nos é virtualmente impossível determinar a sua ‘descendência espiritual’. O pai da Abigail lembra-se de, quando criança, ele e a irmã mais velha – a minha tia Lídia – irem a pé ao seu encontro, até à estação ferroviária da Martingança, para depois fazerem o caminho de regresso na sua companhia. No tempo que durava o trajecto, o Tio Zé Pedro conversava animadamente com eles e ensinava-lhes hinos e cânticos evangélicos. (A Abigail e eu reencontramos nestas descrições a matéria de que são feitas algumas cenas dos filmes de John Ford.) Apesar de se ter mudado muito novo para Sacavém, construiu na sua terra-natal uma casa minúscula, rodeada de ciprestes: um quadrado quase perfeito, com um único piso, que não teria mais de 20 ou 30 m2. Conheci a casa já em ruína, destelhada, tendo por tecto o céu estrelado. Embora se encontre ainda de pé, está hoje recoberta de hera, que se acastelou epicamente sobre aquele domicílio miniatural.
Também a casa dos pais da Abigail foi desenhada pelo Tio Zé Pedro. O meu sogro esforçou-se por edificá-la replicando em grande escala a miniatura em gesso feita pelo tio-avô. É uma habitação cheia de ângulos, divisões inesperadas, correntes de ar, uma casa infantil, lúdica e misteriosa, misto de casa de bonecas e castelo miniatural, com gárgulas como goteiras, elementos decorativos arabescos e um alto-relevo de inspiração bíblica. Pergunto-me que influência a singular geometria daquela casa terá exercido sobre uma criança de uma tão especial acuidade como a Abigail.
Agora, pergunto-me que influência poderá ter esta velha peça em gesso na imaginação de um menino tão ávido como o Benjamim. A peça ficará no corredor de acesso aos quartos, mesmo em frente à porta do quarto do nosso menino. Quando ali estivermos a embalá-lo ou a dar-lhe o leitinho da noite ou a brincar com ele no chão, poderemos entrever o alto-relevo do Tio Zé Pedro. Mais tarde, sempre que o Benjamim sair do quarto, verá na parede em frente a peça do Bom Pastor e da Ovelha Perdida, não como um aviso de perigo, mas como um aceno de alegria. Porque «há mais júbilo no céu por um pecador que se arrepende do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento». (Lc. XV,7)