26/07/2017

«Some nice little internal rhymes»


Há coisas que se infiltram em nós como água no tecto ou um agente encoberto numa organização, e só mais tarde se manifestam. Por estes dias, tenho pensado no peculiar casal de Paterson, o filme de Jarmusch. Paterson e Laura são como água e vinho. Ele é de uma placidez rara: um poeta destituído de qualquer ambição de ‘notoriedade’, aparentemente feliz no emprego — é motorista de autocarro — e confortável na sua prosaica e invariável rotina. Ao invés, ela é a novidade permanente: uma criatura dispersiva (aquilo que, um pouco irritantemente, se designa por ‘pessoa muito criativa’) que pinta cortinados, desenha roupa, sonha com uma carreira de cantora country (Nashville, here I come!) ou confecciona cupcakes que se tornam um huge hit numa feirinha de bairro. Ao poeta preferido do marido — William Carlos Williams — Laura chama ‘Carlo William Carlos’, o que me soou como uma humorada expressão dessa antítese ou, pelo menos, dessa diferença radical. Mas ao desconcerto que este casal possa gerar em nós o protagonista poderia responder com aquele singelo comentário que dirige à menina que pergunta se pode ler-lhe um poema que ela escreveu, «embora» não rime: That’s okay. I kinda like them better when they don't, responde Paterson. Um provérbio conservador postula que «se não queres casar mal, casa-te com igual». Talvez este reaccionário refrão tenha algum fundamento, mas o amor parece pedir versos que não rimam, que não obedecem ao mesmo metro, que não batem certo, que têm qualquer coisa de imprevisto. «Ainda gosto mais quando não rimam.» E no entanto, a seu modo, tanto o poema como o casal rimam. Há neles — como diz Paterson do poema da menina que quer ser poeta — some nice little internal rhymes.

P.S. O poema da miúda intitula-se «Water Falls» (assim mesmo: substantivo e verbo). A rima que está ausente desses versos chega depois, mas já só Paterson — o ouvinte/leitor do poema — tem acesso a ela. Quando chega a casa, Laura está a pendurar um pequenino quadro na parede e o que nele Paterson encontra, não sem um ligeiro susto, é uma queda de água. Só o leitor pode fazer o poema rimar.