25/12/2017

«Um cachopinho tam fermoso e sesudinho»

pormenor da Custódia de Belém (1506), tradicionalmente atribuída a Gil Vicente

É conhecida a fascinação que o extremamente pequeno — miniaturas, soldados de chumbo, selos, microgramas — pode produzir em nós. É como se a significação de um objecto pudesse ser inversamente proporcional à sua dimensão: que mundo, abrigado no interior aquoso de um globo de cristal, se expande diante dos olhos de uma criança (ou de um adulto) quando a neve se agita sobre uma minúscula paisagem de Inverno? Senti sempre esse fascínio, mas ele agravou-se grandemente com a leitura de Walter Benjamin. O seu próprio olhar, diz Adorno, era «microscópico» e a sua caligrafia quase ilegível de tão minúscula. No ensaio que lhe dedicou em Homens em Tempos Sombrios, Hannah Arendt refere-se ao amor de Benjamin por dois pequenos grãos de trigo, existentes na secção judaica do Museu de Cluny, que concentrariam em si todo o Shemá Israel, «a própria essência do judaísmo». Gil Vicente foi também um miniaturista: basta pensar no Breve Sumário da História de Deus, que, para além de condensar um género dramático medieval que adquiria frequentemente proporções de saga, sintetiza em mil versos toda a historia salutis. De resto, estivéssemos certos de que a Custódia de Belém, essa catedral de 73 centímetros feita com o primeiro ouro das Índias, saiu efectivamente das mãos do dramaturgo das Barcas, não precisaríamos de prova suplementar que atestasse o interesse de Vicente por obras meúdas. Mas são os autos que testemunham o mais vivo espanto perante uma miniaturização — a de Deus. No teatro vicentino, a redução do Altíssimo ao corpo frágil de um «cachopinho tam fermoso e sesudinho» (Pastoril Português) transtorna a ordem das coisas: o rústico Gil do Pastoril Castelhano torna-se inexplicavelmente versado nas rubricas da teologia, e no Breve Sumário o «ornado» Mundo, ao ver Deus humanado, toma-se subitamente por casebre — uma «baixa pousada». O Natal tem tudo que ver com a perturbação das nossas noções de alto e baixo, grande e pequeno, forte e fraco, celestial e terreal, cósmico e íntimo, eterno e passageiro, movible y immovible. Deus num bebé recém-nascido, o Sol numa gota de água.

24/12/2017

«O mais célebre dos seus aniversários»

Nascesse hoje, e seria num barco de imigrados, atirado ao mar juntamente com a mãe à vista da costa de Puglia ou da Calábria. Talvez continue a nascer assim, sem sobreviver, e o 25 de Dezembro seja apenas o mais célebre dos seus aniversários. Depois dele o tempo reduziu-se a um entretanto, a um parêntesis de vigília entre a sua morte e a sua nova vinda. Depois dele ninguém é residente, mas todos são refugiados à espera de um visto. Somos nós, bem nutridos do Ocidente, a coluna de estrangeiros em fila para lá do último guichet.

Erri De Luca — Caroço de Azeitona (trad. João Pedro Brito)

03/12/2017

«Que farei eu para herdar a vida eterna?»

fotogramas do plano-sequência final de Some Came Running, de Vincente Minnelli (1958)

Revi ontem à noite Some Came Running, que deu em português Deus Sabe Quanto Amei. Vi o filme pela primeira vez no Teatro do Campo Alegre, no âmbito de um ciclo de homenagem a João Bénard da Costa. Foi no dia 3 de Junho de 2009 — «e nunca poderei ter outro dia assim». O melodrama de Minnelli produziu em mim uma comoção particular, e lembro-me de que na manhã seguinte me apressei a encomendar o DVD. Estranhamente, durante este tempo, não voltei a ver o filme. Não que tivesse ficado esquecido, soterrado por outros filmes que se impusessem como prioritários, ou que se visse sistematicamente protelado por afazeres, leituras, compromissos. Simplesmente, não me atrevi a revê-lo. Temeria que o filme não me solicitasse do mesmo modo que solicitara da primeira vez? Ou temeria o contrário: that inconsolable longing (C.S. Lewis) que tomou conta de mim em Junho de 2009? Não sei dizer. Como também não sei dizer ao certo por que razão ontem à noite me decidi finalmente, oito anos depois, a desselar o filme e a inseri-lo no leitor de DVD. Feliz ou infelizmente — também não sei dizer —, o telefone interrompeu por duas vezes a sessão de home cinema, perturbando o projecto de me abandonar à pieguice e liquefazer por completo. (Para os místicos medievais, as lágrimas eram um dom e, dos séculos VIII e IX em diante, proliferaram as orações pro petitione lacrimarum. Que mutação genética se operou entretanto na nossa sensibilidade para que as lágrimas sejam tão-somente uma manifestação de pieguice ou sentimentalismo?) Ainda assim, foi-me dado comover-me de novo com aquela criatura que Bénard da Costa classificou como «a mais bonita personagem que o cinema alguma vez inventou»: a Ginny de Shirley MacLaine, mulher perdida e achada que corre para o amor e para a morte. Essa rapariga, manifestamente incompetente para discutir obras e correntes literárias, «não sabe nada e percebe tudo», como também diz Bénard, enquanto a professora de literatura por quem o Dave Hirsch de Sinatra se apaixona «sabe tudo e não percebe nada». (Ao rever o filme, senti-me um pouco envergonhado por dar aulas de literatura, receando debitar patacoadas tão possidónias como aquelas que Miss French — que certeiro apelido! — profere, tão segura de si, sobre De Quincey ou Baudelaire.) Não sei se percebo o título original — Some Came Running —, que remete para um passo do Evangelho de Marcos (there came one running, na King James Version), quando alguém chega a correr e se ajoelha aos pés de Jesus de Nazaré, perguntando-lhe: «Bom mestre, que farei eu para herdar a vida eterna?» Na narrativa bíblica, aquele que chegara tão ligeiro afasta-se depois pesaroso, arrastando os pés, ao escutar a resposta de Jesus. Quem corre neste filme? E quem se retira pesada e pesarosamente? Quem herda a vida eterna, e quem a declina? Que coisa no-la pode garantir? E que coisa nos pode dela privar? Um dos momentos mais comoventes deste filme de Minnelli diz respeito ao gesto final de Bama, o incorrigível gambler e santo bebedor interpretado por Dean Martin, que não tira o chapéu ao longo de todo o filme — recusa-se a fazê-lo mesmo numa cama de hospital, depois de ter sido esfaqueado — para que possa tirá-lo na única ocasião em que verdadeiramente se justifica fazê-lo: o funeral de Ginny, que correra para interceptar a bala destinada ao homem que amava sem que fosse capaz de compreendê-lo. (Ninguém tem maior amor do que este…, como também dizem os evangelhos.) Por detrás de Dean Martin, um anjo de pedra e um rio, infalíveis símbolos de perenidade e de transitoriedade: as coisas eternas e as coisas breves, as coisas que permanecem para sempre e as coisas que passam para nunca mais voltar.