27/03/2020

A mais bela canção sobre a condição teatral


Acho que a primeira vez que ouvi Time de David Bowie foi em 1998, num espectáculo de Ricardo Pais, no Teatro São João. Talvez não tenha sido a primeira, mas foi aí que a canção se me tornou memorável. Ricardo Pais garante que é a mais bela canção sobre a condição teatral. Canta Bowie: «Olho para o relógio, são 9h25 e penso: ‘Meu Deus, ainda estou vivo!’ Devíamos estar agora a entrar em cena.» Hoje é Dia Mundial do Teatro. Ainda estamos vivos — e devíamos estar a entrar em cena... O Teatro estabelece uma relação peculiar com o tempo: é efémero, fugaz e, no entanto, como que suspende o tempo, iludindo a morte. «O tempo desconcertou-se», como no Hamlet, e os ponteiros saltaram dos gonzos, ou — como escreve Gil Vicente — «este relógio nam se destempera: é muito certo e muito facundo»?

22/03/2020

O sabonete (um elogio fúnebre)


Que orgulhoso, que activo no início
o seu aroma! Por quantas mãos passou,
que desinteressado serviu, e de cada vez
lá ficava a sujidade. E ele sempre imaculado.
Desgastando-se sem uma queixa.
E assim consumindo-se, mirrando,
sem se dar por ela, já muito fino,
quase transparente,
até que uma manhã
acabou por desaparecer,
não ficou nada. 

Hans Magnus Enzensberger – «O sabonete»,
posto na nossa língua por Alberto Pimenta  
In 66 Poemas (Edições do Saguão, 2019)

18/03/2020

«A higiene é o princípio da santidade.»

A lavagem das mãos tornou-se o credo dos dias que correm. Demandamos uma solução asséptica ou um gel desinfectante um pouco como os cavaleiros da Távola Redonda procuravam o Santo Graal. «A higiene é o princípio da santidade», postulou um dos Padres do Deserto, anacoretas que viviam em buracos ou no cimo de estacas, cultivando o afastamento do mundo – ou o que hoje se designa por distância social ou isolamento profiláctico.

PS – Lembrei-me deste dito dos Padres do Deserto quando, há uns tempos, tropecei num passo de Dias Felizes, de Beckett, um homem que tinha qualquer coisa de anacoreta: «Aconteça o que acontecer, arranja-te.»

17/03/2020

De mãos dadas

É irónico e paradoxal que apenas de mãos dadas ou juntos e unidos, como tenho ouvido repetidamente dizer, possamos vencer um mal que nos coloca à distância e impõe o isolamento.

Estar só

«Grande parte dos nossos males decorre de não sabermos estar sós.» Esta sentença de La Bruyère, que tanto aprecio, adquiriu, por estes dias, um imprevisto alcance.

Sinais dos tempos

A Via Verde remeteu hoje uma newsletter aos seus clientes e amigos. Lia-se em epígrafe: «Evite deslocações.»