03/12/2017

«Que farei eu para herdar a vida eterna?»

fotogramas do plano-sequência final de Some Came Running, de Vincente Minnelli (1958)

Revi ontem à noite Some Came Running, que deu em português Deus Sabe Quanto Amei. Vi o filme pela primeira vez no Teatro do Campo Alegre, no âmbito de um ciclo de homenagem a João Bénard da Costa. Foi no dia 3 de Junho de 2009 — «e nunca poderei ter outro dia assim». O melodrama de Minnelli produziu em mim uma comoção particular, e lembro-me de que na manhã seguinte me apressei a encomendar o DVD. Estranhamente, durante este tempo, não voltei a ver o filme. Não que tivesse ficado esquecido, soterrado por outros filmes que se impusessem como prioritários, ou que se visse sistematicamente protelado por afazeres, leituras, compromissos. Simplesmente, não me atrevi a revê-lo. Temeria que o filme não me solicitasse do mesmo modo que solicitara da primeira vez? Ou temeria o contrário: that inconsolable longing (C.S. Lewis) que tomou conta de mim em Junho de 2009? Não sei dizer. Como também não sei dizer ao certo por que razão ontem à noite me decidi finalmente, oito anos depois, a desselar o filme e a inseri-lo no leitor de DVD. Feliz ou infelizmente — também não sei dizer —, o telefone interrompeu por duas vezes a sessão de home cinema, perturbando o projecto de me abandonar à pieguice e liquefazer por completo. (Para os místicos medievais, as lágrimas eram um dom e, dos séculos VIII e IX em diante, proliferaram as orações pro petitione lacrimarum. Que mutação genética se operou entretanto na nossa sensibilidade para que as lágrimas sejam tão-somente uma manifestação de pieguice ou sentimentalismo?) Ainda assim, foi-me dado comover-me de novo com aquela criatura que Bénard da Costa classificou como «a mais bonita personagem que o cinema alguma vez inventou»: a Ginny de Shirley MacLaine, mulher perdida e achada que corre para o amor e para a morte. Essa rapariga, manifestamente incompetente para discutir obras e correntes literárias, «não sabe nada e percebe tudo», como também diz Bénard, enquanto a professora de literatura por quem o Dave Hirsch de Sinatra se apaixona «sabe tudo e não percebe nada». (Ao rever o filme, senti-me um pouco envergonhado por dar aulas de literatura, receando debitar patacoadas tão possidónias como aquelas que Miss French — que certeiro apelido! — profere, tão segura de si, sobre De Quincey ou Baudelaire.) Não sei se percebo o título original — Some Came Running —, que remete para um passo do Evangelho de Marcos (there came one running, na King James Version), quando alguém chega a correr e se ajoelha aos pés de Jesus de Nazaré, perguntando-lhe: «Bom mestre, que farei eu para herdar a vida eterna?» Na narrativa bíblica, aquele que chegara tão ligeiro afasta-se depois pesaroso, arrastando os pés, ao escutar a resposta de Jesus. Quem corre neste filme? E quem se retira pesada e pesarosamente? Quem herda a vida eterna, e quem a declina? Que coisa no-la pode garantir? E que coisa nos pode dela privar? Um dos momentos mais comoventes deste filme de Minnelli diz respeito ao gesto final de Bama, o incorrigível gambler e santo bebedor interpretado por Dean Martin, que não tira o chapéu ao longo de todo o filme — recusa-se a fazê-lo mesmo numa cama de hospital, depois de ter sido esfaqueado — para que possa tirá-lo na única ocasião em que verdadeiramente se justifica fazê-lo: o funeral de Ginny, que correra para interceptar a bala destinada ao homem que amava sem que fosse capaz de compreendê-lo. (Ninguém tem maior amor do que este…, como também dizem os evangelhos.) Por detrás de Dean Martin, um anjo de pedra e um rio, infalíveis símbolos de perenidade e de transitoriedade: as coisas eternas e as coisas breves, as coisas que permanecem para sempre e as coisas que passam para nunca mais voltar.