30/07/2017

O maior dom da linguagem

Em algumas ocasiões, fui censurado pelo emprego de metáforas em artigos e trabalhos académicos. Note-se que não me reprovaram o recurso a metáforas gastas, mas o uso dessa coisa a que chamamos metáfora. Não vou ser sonso a ponto de dizer que não entendo a pertinência da objecção: toda a metáfora é caprichosa. A metáfora introduz um elemento fantasioso, e inocula a incerteza. Não deixa, todavia, de ser estranho que, numa Faculdade de Letras e especialmente num âmbito designado ‘Estudos Literários’, sejamos admoestados por empregar aquilo que Walter Benjamin tomava como «o maior dom da linguagem». Evidentemente, não é Benjamin quem quer. Quem mais seria capaz de urdir uma metáfora deste quilate: «O tédio é o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência»? Em todo o caso, salvaguardadas todas as distâncias, uma metáfora pode revelar-se mais certeira do que qualquer detalhada elucubração: enquanto a explicação extenua a verdade, a metáfora — se feliz — apanha-a com um só gesto, como a um peixe vivo. É o caso deste aforismo perfeito (e horrendo) de Karl Kraus, que capta toda a dialéctica do iluminismo com um único golpe: «O progresso faz porta-moedas de pele humana.» Onde complicadas teorizações começam a rodar em falso como uma bicicleta estática, a metáfora de Kraus continua a expandir-se e a produzir consequências. Na sua quase insignificância, a metáfora é a pedrinha que atiramos para a superfície do lago e que, no exacto ponto em que cai, desencadeia uma sucessão de ondas concêntricas.