26/11/2017

O Deus das moscas

Não sou dos que blasfemam de Deus por ele ter criado as moscas.
Teixeira de Pascoaes — O Penitente (Camilo Castelo Branco)

25/11/2017

Os milagres de Manuel António Pina

Manuel António Pina ilustrado pela Abigail Ascenso (A Noite, Assírio & Alvim, 2017)

Decepcionado com os «conceitos e coisas» em que acreditou e nos quais descobriu «um rosto sórdido», Manuel António Pina encontrou na amizade «a tão frágil e melancólica pedra […] em que ‘construirei a minha igreja’».* Essa igreja permanece de pé, e os fiéis não a abandonaram. No passado sábado, amigos do poeta — um grémio designado Clube dos Amigos à Espera do Pina, uma alusão chistosa à sua irremediável falta de pontualidade — assinalaram o 74º aniversário do nascimento de MAP no Teatro da Vilarinha. Estive presente porque, nesse encontro, foi apresentada a nova edição de A Noite, uma peça de teatro de MAP agora decorada pela Abigail (decorar: o coração é que sabe!), ilustrações que, como viu Álvaro Magalhães na ocasião, se revelam tão expressivas na sua obscura economia cromática. Álvaro Magalhães recordou os vários Pinas: o Pina poeta, o Pina cronista, o Pina dramaturgo, o Pina jornalista, até o Pina ele-mesmo — aquele que, afinal, mais falta faz ao grupo que se congregava nesse templo da amizade que era o Convívio para «contar histórias estúpidas e rir estupidamente». Álvaro Magalhães referiu-se ainda ao Pina publicitário, provavelmente o mais ignoto dos Pinas. Relatou um anúncio imaginado há muitos anos por MAP que acabaria por dar em coisa nenhuma porque o cliente — a Ecco, empresa de calçado — acabou, muito sensatamente, por o recusar. Achei graça à historieta, e ela revela, de facto, a graça — o wit — que havia e há em MAP. Conto o anúncio tal como o recordo hoje, uma semana depois. Prontos? Cá vai.
Um grupo de peregrinos arrasta-se penosamente pela Estrada Nacional n.º 1 até Fátima. Os pés dos caminhantes metem dó: bolhas, feridas, ligaduras ensanguentadas. Há gente que geme, ou que faz esgares de dor. A dado momento, os penitentes são airosamente ultrapassados por um outro peregrino, que se isola do pelotão cabisbaixo. A criaturinha caminha como se deslizasse, como se andasse um palmo acima do chão: nos pés, um magnífico par de sapatos Ecco. A marcha é interrompida por Nossa Senhora, que aparece no cocuruto de uma azinheira. De sobrolho franzido, admoesta o olímpico peregrino: «Assim, não vale. Com sapatos Ecco, não é sacrifício!»

* Manuel António Pina, «Uma forma de resistência», in Crónica, Saudade da Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2013, p. 302.

21/11/2017

Benjamim, o homem do Sul

O pé do Benjamim, que caminha na nossa direcção, vindo de um qualquer lugar do Sul.

Escolhi o nome do meu filho sem pensar no seu significado etimológico. A decisão foi instantânea: se for menino, vai chamar-se Benjamim. Só depois tivemos curiosidade em saber o que significa: Benjamim quer dizer filho da felicidade. Do aparato crítico de uma edição da Bíblia consta, todavia, um outro significado: etimologicamente, Benjamim significa homem do Sul. Sem que saiba dizer porquê, esta significação pareceu-me logo ainda mais bonita — e muito mais misteriosa — do que aquela que correntemente se atribui ao nome. O Benjamim vem de longe, de muito longe, e com ele chegará também algum calor e alguma luz que só encontramos em paragens meridionais. Porque talvez só nos dias longos e quentes do Sul se possa dizer o que a personagem de Karen diz a Denys em África Minha: «Digas o que disseres agora, eu acredito.»

19/11/2017

Do almoço com o meu amigo de Zebreiros (3)

O meu amigo de Zebreiros estudou na Universidade de Coimbra, depois na Universidade do Porto e novamente na Universidade de Coimbra. Não chegou a formar-se. Anos depois de abandonar definitivamente a vida académica, encontrou um dos seus professores de Direito:
— Que pena você não ter concluído a licenciatura, e logo por duas cadeiras!
— Senhor professor, não são essas duas cadeiras que eu lamento, mas as vinte que fiz.

Do almoço com o meu amigo de Zebreiros (2)

Contou-me o meu amigo de Zebreiros que o filho, quando era pequeno, lhe perguntava: «Pai, porque é que só tiveste um filho?» Ele respondia, invariavelmente: «Porque não pude ter meio.»

Do almoço com o meu amigo de Zebreiros (1)


Na lapela do blazer, o meu amigo de Zebreiros trazia um pin com um redondíssimo número: 100. Perguntei-lhe o que significava aquilo: uma efeméride? «São os 100 anos da Revolução de Outubro, os 100 anos do Rancho Folclórico de Zebreiros e os 100 anos da Leica. Decida você.»

18/11/2017

O meu amigo de Zebreiros

O meu amigo de Zebreiros é um homem raro e inclassificável, sobre o qual terei forçosamente de escrever um destes dias, para ver se compreendo. Um conversador extraordinário e um impagável contador de histórias, mas também um misantropo: recordo-me de almoços em que mal trocámos uma palavra. Homem de uma cultura literária, religiosa, artística e filosófica incompreensível na era das selfies, das redes sociais e das séries da HBO, é também capaz de demonstrar enfado por uma importante novidade editorial ou de se exasperar, como um filisteu, com as coisas da cultura: «Lá vai você pôr-se na bicha dos inteligentes», atirou-me certa vez, quando me preparava para ir a uma conferência de Peter Sloterdijk em Serralves. Pode ser de uma cortesia imensa, de uma amabilidade quase anacrónica, mas mostrar-se também agreste e ter reacções desagradáveis. É um escritor acabado, mas dele só conheço cartas — e notas sem texto. Foi publicitário na década de 60 ou de 70, mas também olivicultor em Trás-os-Montes. Em algumas ocasiões, pode ser visto na tribuna do Teatro São João, no lugar D8. É um parente do Senhor Keuner, personagem enigmática e algo insolente de Brecht, mas o seu ex-libris — carimbado na folha de rosto dos milhares de livros da sua biblioteca — é um verso de Celan: Schwerer werden. Leichter sein. [«Ficar mais pesado. Ser mais leve.»] A história da nossa amizade, que começou no ano 2000, é algo acidentada: tivemos momentos de intensa proximidade, tempos em que nos encontrávamos duas, três ou quatro vezes por semana, mas também alturas de uma distância injustificável, meses sem um telefonema sequer. Devo-lhe mais do que estou, neste momento, em condições de admitir. Nesta sexta-feira, encontrámo-nos novamente para almoçar, depois de uma temporada de silêncio. Entre outras coisas, falámos de criaturas que tiram selfies com largos sorrisos à frente dos quadros de Bosch e de helenistas que caminham e discorrem como se lavassem as partes íntimas com água vinda directamente da fonte oracular de Castália, em Delfos.

12/11/2017

Música e letra

Chet Baker fotografado por Herman Leonard (Nova Iorque, 1956)  

Em vez de enfrentar as tarefas urgentes que tenho diante de mim, voltei a dissipar o meu tempo livre em duas ociosas actividades: decorar texto (acabo de empinar os 24 versículos do assombroso Salmo 139) e tocar — muito sofrivelmente — piano (escuso-me a divulgar o castigado repertório). Coisinhas que talvez adiem dois ou três dias o Alzheimer, mas ignoro que proveito imediato me possam trazer, sobretudo porque não faço planos de exibir fora do agregado familiar o meu talento de diseur e ainda menos o meu virtuosismo lisztiano. Em todo o caso, a combinação destas duas recreativas ocupações trouxe-me agora à memória uma das histórias de Chet Baker, esse anjo por quem a droga se apaixonou, pedindo-lhe os dentes em troca. Conta-se que, em certa ocasião, o trompetista executava um solo quando, inexplicavelmente, estacou, permanecendo absorto por um bom bocado. Os restantes músicos continuaram, desamparadamente, sem a participação do trompete. No final, perguntaram a Chet por que parara de tocar. «Esqueci-me da letra», foi a sua resposta.

09/11/2017

Dois amores

Um amigo meu tem um gato a que deu o nome Estaline. Descobri hoje que o apelido da mulher é Espírito Santo.

07/11/2017

Perdoar o funcionário público mais próximo

 C.S. Lewis em 1950, fotografado para a Vogue por Norman Parkinson

O perdão é um escândalo. Quer dizer, uma pedra em que a nossa racionalidade tropeça uma e outra vez. Um escritor napolitano chamado Erri De Luca diz que o perdão é um dos dois obstáculos que o impedem de crer. O outro é a oração, esse ímpeto que leva o crente a dirigir-se a Deus como ‘tu’. Erri De Luca só pode falar de Deus na terceira pessoa. Este alpinista e activista — entre outras coisas, trabalhou cinco anos como motorista nas colunas de ajuda humanitária na Bósnia — aprendeu o hebraico sozinho, começou a traduzir livros da Bíblia e todas as manhãs lê uma porção das Escrituras: um punhado de palavras duras que o acompanham ao longo do dia, «um caroço de azeitona para andar a girar na boca». Mas o imperdoável é uma fronteira que não está em condições de atravessar, isto é, abolir: «Não sei perdoar e não posso admitir ser perdoado.» De um certo ponto de vista, Erri De Luca está na posição inversa de C.S. Lewis, que se autodefiniu como the most dejected and reluctant convert in all England: Lewis não queria crer, mas é arrastado para dentro; De Luca desejaria crer, mas é mantido à distância. Também Lewis, contudo, reconheceu o carácter problemático do perdão: «É um belíssimo ideal, até termos alguma coisa para perdoar.» Então, torna-se uma afronta para o espírito, uma hipocrisia repugnante, para além de uma fantasiosa impossibilidade. O perdão é uma blasfémia para a nossa razão, ou para o nosso amor-próprio, ou para o nosso sentido de justiça. Um livro como The Sunflower — em que um muito impressivo episódio vivido por Simon Wiesenthal com um oficial nazi moribundo dá ensejo a um inquérito sobre «as possibilidades e os limites do perdão», no qual tomam parte 53 pessoas, entre teólogos, rabinos, políticos, juristas, psiquiatras, escritores, para além de sobreviventes do Holocausto e outros genocídios e até de um ex-nazi como Albert Speer — ilustra bem o nó cego de problemas que o perdão parece colocar. Mas, como argumenta Lewis, não temos de começar por perdoar os torcionários nazis (ou mesmo por perdoar pedófilos e incendiários), assim como aquele que aprende matemática não começa por álgebra linear: perdoar «o funcionário público mais próximo» por aquilo que nos fez na semana passada, diz, pode manter-nos entretidos algum tempo. É evidente que C.S. Lewis não viveu o bastante para conhecer os melhoramentos introduzidos na administração pública pelos vários programas Simplex. Provavelmente, teremos de começar por alguém que esteja, de facto, ao nosso lado. Melhor ainda: podemos começar por nós próprios.

O indesculpável

O objecto do perdão é o indesculpável. O que é desculpável só requer uma boa explicação.

04/11/2017

Desculpar é humano, perdoar é divino

Há duas semanas, o país parecia estar em suspenso, aguardando um pedido de desculpa que tardava. «Já está em condições de pedir desculpa a todo o país?», questionou um tribuno na casa da democracia. A resposta do primeiro-ministro veio na forma de uma oração subordinada adverbial condicional: «Se quer ouvir-me pedir desculpas, eu peço desculpas.» Não me demorei um minuto na questão da pertinência, da oportunidade ou sequer da utilidade de um tal pedido. Como frequentemente acontece, a minha atenção desviou-se para um aspecto irrisório do problema; neste caso, um detalhe linguístico. Na ocasião, perguntei-me se o que estava em causa era um pedido de desculpas ou um pedido de perdão. A dúvida agravou-se desde então, talvez porque, nos últimos tempos, me tenho confrontado repetidamente com a necessidade de decidir: peço desculpa ou peço perdão? Não se trata de uma dúvida gramatical ou estilística, do género: devo escrever ‘eu mesmo’ ou ‘eu próprio’? ‘Pedir perdão’ não é uma versão mais enfática e teatral de ‘pedir desculpa’. Na verdade, trata-se de coisas distintas. Em certo sentido, de coisas opostas. (Aprendi isto com a teologia e a apologética, essas criaturinhas pequenas e feias que não podem ser vistas à luz do dia.*) Porque o que amiúde está em jogo num pedido de desculpas é, na verdade, a mobilização de ‘circunstâncias atenuantes’ da culpa: não tive essa intenção, não pude evitá-lo, estava cheiinho de nervos, dormi pouco, fui provocado, etc. Um pouco como fez agora Kevin Spacey, que, confrontado com acusações de assédio sexual, pediu desculpas por um deeply inappropriate drunken behaviour. (Uma desculpa quase tão esfarrapada quanto a de uma desarranjada canção de Tom Waits: The piano has been drinking, not me…) Pedir perdão implica antes o reconhecimento de que há uma parcela de culpa irredutível a todas as desculpas. Nesse momento, o nosso afã autojustificativo revela-se, além de maçador, supérfluo: uma perda de tempo, uma sementeira no deserto. Só podemos então confiar-nos ao perdão, e isso pode ser angustiante, mas também libertador.

* Refiro-me ao livro The Weight of Glory, de C.S. Lewis.

01/11/2017

Maçãs tocadas e citações eruditas

Shapiro conhecia todos os géneros de literatura e lia todas as publicações; tinha contactos com livreiros de todo o mundo. [...] Mas o pai de Shapiro nunca tivera um cêntimo e vendia maçãs podres em South Water Street num carrinho. Havia mais verdade sobre a vida naquelas maçãs tocadas e estragadas, e no velho Shapiro, que cheirava a cavalo e a produtos agrícolas, do que em todas as citações eruditas do filho.
Saul Bellow — Herzog