25/11/2017

Os milagres de Manuel António Pina

Manuel António Pina ilustrado pela Abigail Ascenso (A Noite, Assírio & Alvim, 2017)

Decepcionado com os «conceitos e coisas» em que acreditou e nos quais descobriu «um rosto sórdido», Manuel António Pina encontrou na amizade «a tão frágil e melancólica pedra […] em que ‘construirei a minha igreja’».* Essa igreja permanece de pé, e os fiéis não a abandonaram. No passado sábado, amigos do poeta — um grémio designado Clube dos Amigos à Espera do Pina, uma alusão chistosa à sua irremediável falta de pontualidade — assinalaram o 74º aniversário do nascimento de MAP no Teatro da Vilarinha. Estive presente porque, nesse encontro, foi apresentada a nova edição de A Noite, uma peça de teatro de MAP agora decorada pela Abigail (decorar: o coração é que sabe!), ilustrações que, como viu Álvaro Magalhães na ocasião, se revelam tão expressivas na sua obscura economia cromática. Álvaro Magalhães recordou os vários Pinas: o Pina poeta, o Pina cronista, o Pina dramaturgo, o Pina jornalista, até o Pina ele-mesmo — aquele que, afinal, mais falta faz ao grupo que se congregava nesse templo da amizade que era o Convívio para «contar histórias estúpidas e rir estupidamente». Álvaro Magalhães referiu-se ainda ao Pina publicitário, provavelmente o mais ignoto dos Pinas. Relatou um anúncio imaginado há muitos anos por MAP que acabaria por dar em coisa nenhuma porque o cliente — a Ecco, empresa de calçado — acabou, muito sensatamente, por o recusar. Achei graça à historieta, e ela revela, de facto, a graça — o wit — que havia e há em MAP. Conto o anúncio tal como o recordo hoje, uma semana depois. Prontos? Cá vai.
Um grupo de peregrinos arrasta-se penosamente pela Estrada Nacional n.º 1 até Fátima. Os pés dos caminhantes metem dó: bolhas, feridas, ligaduras ensanguentadas. Há gente que geme, ou que faz esgares de dor. A dado momento, os penitentes são airosamente ultrapassados por um outro peregrino, que se isola do pelotão cabisbaixo. A criaturinha caminha como se deslizasse, como se andasse um palmo acima do chão: nos pés, um magnífico par de sapatos Ecco. A marcha é interrompida por Nossa Senhora, que aparece no cocuruto de uma azinheira. De sobrolho franzido, admoesta o olímpico peregrino: «Assim, não vale. Com sapatos Ecco, não é sacrifício!»

* Manuel António Pina, «Uma forma de resistência», in Crónica, Saudade da Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2013, p. 302.