19/08/2018

Macaquinhos de imitação

Eis o irresolúvel paradoxo do evolucionismo darwiniano: o biólogo macaqueia o Criador. Tal como Deus, segundo o Génesis, cria Eva a partir de uma costela, o evolucionista recria o Homem de Neanderthal a partir de uma mandíbula e dois incisivos.

Tornozelo

Garantia que não era fetichista, mas, a partir daquele tornozelo, era capaz de reconstituir metodicamente todo o corpo, como o biólogo evolucionista, a partir de um fémur, é capaz de recriar um australopithecus com três milhões de anos.

18/08/2018

A gente não sabe o lugar certo de colocar o desejo


Há uns anos escrevi uma dissertação de mestrado sobre a peça Desejo Sob os Ulmeiros, de Eugene O’Neill. A epígrafe que escolhi supera aquela centena de páginas que me atribuiu o tristíssimo título de mestre. São apenas dois versos de uma canção de Caetano Veloso, “Pecado Original”, escrita para um filme com argumento de Nelson Rodrigues, o anjo pornográfico do teatro brasileiro. Dizem assim: “A gente não sabe o lugar certo/ de colocar o desejo.” O objecto do desejo é-nos obscuro, é extravagante em termos de sentido ou lógica: como explica Lacan, o desejo é fantasmático. Num auto de Gil Vicente, Satanás desdenha de Adão e Eva porque afinal o fruto que os fez cair era pequenino e sensaborão… É por isso que Caetano canta:
                                  Todo o dia, toda a noite
                                  Toda a hora, toda a madrugada
                                  Momento e manhã
                                  Todo o mundo, todos os segundos do minuto
                                  Vivem a eternidade da maçã.

17/08/2018

To be alone with me you went up on the tree


Disse que criaria um álbum por estado americano, mas ficou-se pelo Michigan e por Illinois. Os projectos votados ao fracasso ou a tendência para colocar a fasquia acima da capacidade de impulsão bastar-me-iam para simpatizar com Sufjan Stevens, songwriter de voz cândida e doce. Começou por atrair-me o arrebatamento e o magnífico excesso de Illinoise; depois encantou-me o desamparo de canções que pedem apenas uma guitarra, ou um banjo. “To be alone with you” é uma dessas canções. Parece uma canção de amor — e é uma canção de amor: o amor de Cristo. “To be alone with you”: que sacrifícios uma verdadeira experiência de intimidade reclama de nós? E o que é a intimidade senão uma solidão amorosamente partilhada?

16/08/2018

If you try walking in my shoes

 
Somos cruéis com os nossos ídolos: abandonamo-los sem dó depois os termos escravizado com a nossa devoção. No meu caso, há posters que não chegaram a ser arrancados do quarto interior da minha adolescência. É o caso dos Depeche Mode. Nada do que antes eu e o meu gémeo ouvíamos é sequer digno de lembrança, é aliás preferível silenciá-lo. No disco Songs of Faith and Devotion, carne e espírito formam uma espécie de anel de Moebius, sem parte de dentro nem parte de fora. (Não há espiritualidade descarnada, o próprio Deus se fez carne.) O tema “Walking in my shoes” pertence ao hinário de uma religião carnal, que prega o ordálio do desejo num estádio de futebol.

15/08/2018

Uma canção para todos os que não têm força de vontade para ir à igreja ao domingo de manhã



Cave, Cash, Cohen: um profeta, um pregador, um sacerdote. A estas figuras preciso de acrescentar um vagabundo: Tom Waits. É ele, digamos, o quarto ponto cardeal da rosa-dos-ventos da minha música. Dele partilho também uma canção de devoção: “Chocolate Jesus”, um tema do disco Mule Variations. Se precisamos de um Salvador que nos faça sentir bem por dentro, por que não um Jesus de chocolate? A fé deste rapaz leva-o a cair de joelhos não diante do altar da igreja, mas diante da montra de uma candy store. Eis uma canção para todos os que não têm força de vontade para se levantar ao domingo de manhã e ir à igreja. É mais agradável um Jesus de chocolate de leite, embrulhado em celofane. Pode, claro, derreter-se com o calor, mas, nesse caso, derrame-se o Messias sobre uma bola de gelado for a nice parfait.

14/08/2018

We have a woman for a mayor


Gosto especialmente do Nick Cave que se dispôs a ler o Evangelho de Marcos depois de passar anos a fio a explorar tão lucrativamente o Deus vingativo e irascível do Velho Testamento. Discos como The Boatman’s Call e sobretudo And no more shall we part demonstram que o cão danado se deixou domesticar e que o profeta maldito cedeu a amenidades evangélicas? Não nos deixemos enganar pelo velho Nick. Old Nick é, aliás, uma das alcunhas do diabo. Há qualquer coisa de mefistofélico nesta canção, “God is in the house”, uma balada assassina cuja doçura melódica convive com a ferocidade da descrição de uma pacata cidade americana tão self-righteous quanto um fariseu do primeiro século. Uma cidadezinha onde a polícia só é necessária para salvar gatinhos das árvores… God is the house? Ah, sim, Ele está na casa, e quando decidir sair, acreditem, não vai ser bonito de se ver.

13/08/2018

He knew I would not hide


Um profeta como Isaías ou um lazy bastard living in a suit? Leonard Cohen ocupa um lugar de destaque na minha pobre discoteca. Nos anos sessenta, reescreveu a história de Abraão e Isaac, uma das narrativas mais belas — e escandalosas — das Escrituras. Uso essa canção para ilustrar aos meus alunos o modo como a Bíblia fecunda, misteriosamente, a imaginação dos artistas mais interpelantes do nosso tempo. Na canção “Story of Isaac”, magnetizam-me pormenores apócrifos como os olhos azuis de Abraão ou o seu machado de ouro, manifestação simbólica da fé de um homem chamado a sacrificar o seu único filho. Sabemos que um anjo suspende esse gesto, e a faca que iria degolar serve só para rasgar os nós da atadura… O que a música de Cohen faz brilhar não é o tremeluzente gume da faca de Abraão sobre o pescoço do filho, mas a beleza da palavra: And my father’s hand was trembling/ with the beauty of the word.

10/08/2018

I can see us sitting round the table


 

Gosto muito desta versão despojada de “Family Bible”, uma das grandes canções de Willie Nelson. Foi gravada num concerto em que ele e Johnny Cash entraram sem programa, trocando canções e histórias, enganando-se aqui e ali nos acordes. “Family Bible” traz-me memórias da minha própria infância, não porque ouvisse a canção nesse tempo, mas porque, quando os meus pais se converteram (tinha eu 8 anos), a Bíblia passou a ser lida em casa, à mesa, como acontece na melhor tradição protestante. I can see us sitting round the table... Muitas vezes não fazíamos ideia do que estávamos a ler. Talvez pressentíssemos a imensidão de um significado, mesmo ficando nós pela superfície das palavras. Hoje, quando vejo ou folheio a velha Bíblia do meu pai, cravejada de notas, manchas e sublinhados, algumas folhas tão finas que se tornaram quase transparentes, reconheço na Escritura a matéria de que é feita a sarça-ardente de Moisés — alguma coisa que arde sem se consumir.

O homem está de volta



No princípio, era a Palavra. Johnny Cash é um daqueles homens em cuja palavra podemos acreditar. Quando a canção termina, ouvimo-lo ainda. Dele Leonard Cohen disse que é «a mais alta figura no círculo da integridade», «a voz mais profunda quando a noite chega». Gosto especialmente dos discos finais de Cash, os American Recordings produzidos por Rick Rubin. Formam o testamento musical e espiritual deste fora-da-lei que Bono Vox comparou a São João Batista — uma voz que clama no deserto. Desses discos escolho “The Man Comes Around”, canção que abre e fecha com citações do Apocalipse mas que convoca muitos outros passos bíblicos. Tronos, escadas de ouro, trombetas, cem milhões de anjos, um cavaleiro chamado Morte, trovões, um redemoinho: o pano de boca da História abre-se sobre a verdadeira realidade, a única realidade: a segunda vinda de Cristo. Adora, ou foge.