07/11/2017

Perdoar o funcionário público mais próximo

 C.S. Lewis em 1950, fotografado para a Vogue por Norman Parkinson

O perdão é um escândalo. Quer dizer, uma pedra em que a nossa racionalidade tropeça uma e outra vez. Um escritor napolitano chamado Erri De Luca diz que o perdão é um dos dois obstáculos que o impedem de crer. O outro é a oração, esse ímpeto que leva o crente a dirigir-se a Deus como ‘tu’. Erri De Luca só pode falar de Deus na terceira pessoa. Este alpinista e activista — entre outras coisas, trabalhou cinco anos como motorista nas colunas de ajuda humanitária na Bósnia — aprendeu o hebraico sozinho, começou a traduzir livros da Bíblia e todas as manhãs lê uma porção das Escrituras: um punhado de palavras duras que o acompanham ao longo do dia, «um caroço de azeitona para andar a girar na boca». Mas o imperdoável é uma fronteira que não está em condições de atravessar, isto é, abolir: «Não sei perdoar e não posso admitir ser perdoado.» De um certo ponto de vista, Erri De Luca está na posição inversa de C.S. Lewis, que se autodefiniu como the most dejected and reluctant convert in all England: Lewis não queria crer, mas é arrastado para dentro; De Luca desejaria crer, mas é mantido à distância. Também Lewis, contudo, reconheceu o carácter problemático do perdão: «É um belíssimo ideal, até termos alguma coisa para perdoar.» Então, torna-se uma afronta para o espírito, uma hipocrisia repugnante, para além de uma fantasiosa impossibilidade. O perdão é uma blasfémia para a nossa razão, ou para o nosso amor-próprio, ou para o nosso sentido de justiça. Um livro como The Sunflower — em que um muito impressivo episódio vivido por Simon Wiesenthal com um oficial nazi moribundo dá ensejo a um inquérito sobre «as possibilidades e os limites do perdão», no qual tomam parte 53 pessoas, entre teólogos, rabinos, políticos, juristas, psiquiatras, escritores, para além de sobreviventes do Holocausto e outros genocídios e até de um ex-nazi como Albert Speer — ilustra bem o nó cego de problemas que o perdão parece colocar. Mas, como argumenta Lewis, não temos de começar por perdoar os torcionários nazis (ou mesmo por perdoar pedófilos e incendiários), assim como aquele que aprende matemática não começa por álgebra linear: perdoar «o funcionário público mais próximo» por aquilo que nos fez na semana passada, diz, pode manter-nos entretidos algum tempo. É evidente que C.S. Lewis não viveu o bastante para conhecer os melhoramentos introduzidos na administração pública pelos vários programas Simplex. Provavelmente, teremos de começar por alguém que esteja, de facto, ao nosso lado. Melhor ainda: podemos começar por nós próprios.