18/11/2017

O meu amigo de Zebreiros

O meu amigo de Zebreiros é um homem raro e inclassificável, sobre o qual terei forçosamente de escrever um destes dias, para ver se compreendo. Um conversador extraordinário e um impagável contador de histórias, mas também um misantropo: recordo-me de almoços em que mal trocámos uma palavra. Homem de uma cultura literária, religiosa, artística e filosófica incompreensível na era das selfies, das redes sociais e das séries da HBO, é também capaz de demonstrar enfado por uma importante novidade editorial ou de se exasperar, como um filisteu, com as coisas da cultura: «Lá vai você pôr-se na bicha dos inteligentes», atirou-me certa vez, quando me preparava para ir a uma conferência de Peter Sloterdijk em Serralves. Pode ser de uma cortesia imensa, de uma amabilidade quase anacrónica, mas mostrar-se também agreste e ter reacções desagradáveis. É um escritor acabado, mas dele só conheço cartas — e notas sem texto. Foi publicitário na década de 60 ou de 70, mas também olivicultor em Trás-os-Montes. Em algumas ocasiões, pode ser visto na tribuna do Teatro São João, no lugar D8. É um parente do Senhor Keuner, personagem enigmática e algo insolente de Brecht, mas o seu ex-libris — carimbado na folha de rosto dos milhares de livros da sua biblioteca — é um verso de Celan: Schwerer werden. Leichter sein. [«Ficar mais pesado. Ser mais leve.»] A história da nossa amizade, que começou no ano 2000, é algo acidentada: tivemos momentos de intensa proximidade, tempos em que nos encontrávamos duas, três ou quatro vezes por semana, mas também alturas de uma distância injustificável, meses sem um telefonema sequer. Devo-lhe mais do que estou, neste momento, em condições de admitir. Nesta sexta-feira, encontrámo-nos novamente para almoçar, depois de uma temporada de silêncio. Entre outras coisas, falámos de criaturas que tiram selfies com largos sorrisos à frente dos quadros de Bosch e de helenistas que caminham e discorrem como se lavassem as partes íntimas com água vinda directamente da fonte oracular de Castália, em Delfos.