Há semanas, por causa de uma entrevista televisiva,
pediram-me uma nota biográfica que não fosse estritamente curricular, que contivesse
também alguns dados pessoais. Pareceu-me um embuste escrevê-la na terceira
pessoa. Saiu o que se segue.
Nasci em 1976, no Porto, onde resido e trabalho. Sou o mais
novo de três irmãos – escassos seis anos de diferença para a minha irmã Susana,
cinco minutos imensos para o meu gémeo Jorge, que é hoje vereador da Cultura da
cidade de Viseu. Filho e neto de metalúrgicos, não saberia dizer de que é feito
o latão, o zinco ou o aço. Mas consigo sentir ainda o cheiro da limalha e das
emulsões, e ouvir o ritmo sincopado da cunhagem. O facto mais decisivo da minha
infância foi a conversão dos nossos pais, Ernesto e Leonor, em 1984, na Igreja Baptista.
As Escrituras passaram a ser lidas em casa: muitas vezes, não entendíamos o que
líamos, pressentíamos talvez a imensidão de um sentido. Ao contrário do que tão
teimosamente pensam os meus amigos, não gosto de falar de religião, muito menos
dessa coisa difusa e narcótica a que se dá o nome de “espiritualidade”. Mas a
Bíblia permanece para mim como a sarça ardente do Monte Horeb: coisa viva que
arde sem se consumir, um livro temperamental e caprichoso, com vontade própria,
luz própria. As Escrituras estão no centro do meu trabalho como dramaturgista –
comecei, em 2009, por esclarecer as coordenadas bíblicas de um auto de Gil
Vicente – e como investigador académico: as relações perigosas entre Bíblia e
literatura formam o meu campo preferencial de análise, reflexão teórica e produção
ensaística.
Em 1998, concluí a licenciatura em Ciências da Comunicação da
Universidade da Beira Interior, de que fui à época, passe a imodéstia, o melhor
aluno. Foi uma decepção não ter sido convidado para ali ficar. Conheci dois
professores excepcionais, António Bento e Edmundo Cordeiro – é a voz deles que,
em alguns momentos, me esforço ainda por ouvir. Iniciei uma obscura carreira
académica como assistente universitário em Bragança, onde leccionei disciplinas
várias de um curso de Comunicação e, depois, também de um curso de Animação
Cultural. Durante dois anos, vivi entre o Nordeste Transmontano e Lisboa, onde
frequentava um curso de mestrado, desperdiçando boa parte do meu tempo de vida em
camionetas da Rodoviária Nacional que sacolejavam aflitivamente IP4 acima, IP4
abaixo.
Em 2000, deixei irresponsavelmente um ano lectivo a meio
para vir trabalhar no Teatro Nacional São João dirigido por Ricardo Pais, instituição
de que sou um epígono ou subproduto. Desde 1996 que o TNSJ vinha a formar-me como
espectador de Teatro. O final do século XX foi um período entusiasmante para as
artes cénicas no Porto: com o São João, jogava-se não só a reinvenção do estafado
modelo de Teatro Nacional no Portugal democrático, mas também a renovação das
linguagens de cena e a profissionalização dos modos de produção e comunicação
das artes performativas. O Teatro parecia emancipar-se de um atávico amadorismo,
da sensação de uma obsolescência irremediável, de uma sebenta estético-ideológica
velha e relha. No centro de tudo isto, a personalidade magnética de Ricardo
Pais, que eu não conhecia pessoalmente. Conservo ainda, com orgulho pueril, o
anúncio de jornal a que, tão pouco convictamente, respondi. Ainda hoje me
parece que não detenho o perfil de competências que então se requeria.
Entre 2000 e 2005, fui assessor de imprensa do TNSJ, função rotineira
e um pouco desmoralizante que, todavia, me concedeu tempo para apreender a casa
e a mecânica do Teatro e, ao mesmo tempo, conhecer os autores, os encenadores, as
companhias – o tempo e modo do Teatro, digamos. Ausentei-me do TNSJ por um ano,
com o pretexto de fazer uma pós-graduação em Cultura Contemporânea e Novas Tecnologias
da Universidade Nova de Lisboa. Voltei para reforçar o departamento de Edições,
onde trabalhei doze anos ininterruptos, entre 2006 e 2018. Assumi, com João
Luís Pereira, a direcção editorial da colecção de livros do TNSJ nas editoras Campo
das Letras e Húmus e assegurei a coordenação de muitas outras publicações, como
os Manuais de Leitura das produções da casa, colectâneas de textos, boa parte
deles originais, que expandem o acesso crítico às obras e aos autores, mas
também à cena, prolongando pela leitura a experiência do espectador. (Numa apreciação
exorbitante, o crítico literário Luís Miguel Queirós escrevia, no jornal Público,
que estes Manuais de Leitura justificariam a atribuição do «estatuto de instituição cultural relevante por direito próprio» ao núcleo editorial do TNSJ.)
O meu ingresso no departamento editorial aprofundou a
proximidade com Ricardo Pais, que vivia desde 2003 uma segunda encarnação como responsável
máximo do TNSJ, acumulando a direcção artística e a presidência do Conselho de
Administração. Acompanhei de perto projectos como Turismo Infinito – o espectáculo
quintessencial de Ricardo Pais –, fiz-lhe várias entrevistas e com ele
comissariei, em 2008, Tu Judeu e Eu Judeu, um colóquio sobre O Mercador de Veneza
de Shakespeare e a ‘questão judaica’. Foi a minha primeira experiência ao nível
da organização de conferências e mesas-redondas, papel que assumi repetidamente
nos anos que se seguiram, já com Nuno Carinhas na direcção artística do TNSJ.
Foi ele quem me inventou como dramaturgista, figura nobre na
tradição teatral germânica e emprego para gente frustrada das letras na nossa. No
teatro, dramaturgista pode ser tanto aquele que não escreve uma só palavra – explorando,
com encenador e actores, as linhas e entrelinhas de uma peça ou estabelecendo
um sentido global para ela – como aquele que constrói um guião ou texto cénico
inédito, partindo de materiais pré-existentes, dramáticos e não-dramáticos: um bricoleur
(ou habilidoso) que aproveita o que está à mão para propor uma coisa nova. Nesta
condição, trabalhei dez anos com Nuno Carinhas em espectáculos que marcaram
toda uma década de produção artística no TNSJ, começando com autos vicentinos
de carácter religioso e teológico (Breve Sumário da História de Deus em 2009 e Alma
em 2012), peças que boicotam o lugar-comum que vê em Gil Vicente um autor de
extracção popular, cómico e chalaceiro. A parceria prosseguiu com Os Últimos
Dias da Humanidade (2016), um drama majestoso e monstruoso do austríaco Karl
Kraus, e Macbeth (2017), a mais aziaga tragédia de Shakespeare, culminando em Uma
Noite no Futuro (2018), um teatro cheio de luz e sombras que convizinhava peças
de Samuel Beckett e de Gil Vicente. Em 2014, trabalhei também como
dramaturgista com Ricardo Pais, no espectáculo al mada nada, projecto que
mobilizava textos de Almada Negreiros e associava um actor e uma crew de b-boys,
para além de um percussionista.
Nesses anos, assegurei regularmente a organização de
colóquios, conferências e debates, tomando parte neles ou assumindo a sua
moderação, e envolvendo personalidades como José Tolentino Mendonça, Maria
Velho da Costa, Frederico Lourenço, Pedro Mexia, António M. Feijó, Frei Bento
Domingues, Luísa Costa Gomes, José Pacheco Pereira, Ricardo Araújo Pereira e Alberto
Pimenta, ou alguns dos mais importantes especialistas internacionais em
Shakespeare, como Michael Dobson (director do Shakespeare Institute) e Janet
Adelman (University of California). Paradoxalmente, em anos marcados pela crise
económico-financeira que se abateu sobre o país e afectou gravemente o TNSJ, conheci
o privilégio e o luxo – leia-se, experiências de descoberta, aprendizagem e
inspiração. Devo-o a Nuno Carinhas, cuja discrição é directamente proporcional
ao seu talento.
No ínterim, retomei a minha actividade académica: concluí em
2014 um mestrado em Estudos de Teatro na Faculdade de Letras da Universidade do
Porto e inscrevi-me em doutoramento, com o propósito de escrever uma tese sobre
o teatro religioso de Gil Vicente, mobilizando leituras e pesquisas realizadas
ao longo dos anos. Voltei a dar aulas: sou, desde 2016, professor de literatura
dramática no curso de licenciatura em Artes Dramáticas – Formação de Actores da
Universidade Lusófona do Porto. É talvez a leccionar que me sinto mais feliz,
isto é, que mais rapidamente me esqueço de mim próprio: a sala de aula pode,
afinal, ser um recreio. Passei também a colaborar como autor, conferencista e
formador com outras instituições, como a companhia Comédias do Minho, o São
Luiz Teatro Municipal ou o Balleteatro Escola Profissional.
Em 2017, o Estado atribuiu-me uma bolsa de doutoramento para
um período de quatro anos. Preparava-me para deixar o TNSJ quando Ministério da
Cultura me convidou a assumir a presidência do Conselho de Administração da
instituição, ao fim de 18 anos de casa. Mais uma vez, o Teatro perturbou os
meus planos académicos. Aceitei sem sombra de hesitação, só depois fui
acometido pela dúvida. É como diz um poema de Manuel António Pina: «Primeiro
sabem-se as respostas./ As perguntas chegam sempre depois.» Não possuo o perfil
típico de gestor público. Gosto de pensar que, tal como a personagem de Hamlet
se encontra escrita mas pode ser feita de muitas maneiras, também o ‘papel’ de
presidente do Conselho de Administração está escrito – fixado na lei – mas
admite uma razoável amplitude de interpretação. De resto, tal como Hamlet, o
presidente do Conselho de Administração do São João tem de possuir um fascínio
contínuo pelo Teatro e gostar de actores. Também deve ponderar muito antes de
decidir – só não pode demorar cinco actos a agir.
Esta espécie de nota biográfica não estaria completa se não
mencionasse este facto: sou cristão. Inibo-me frequentemente de o dizer – não
porque considere que as crenças religiosas pertençam à esfera íntima, privada:
o Novo Testamento não admite tal hipótese. É, antes, a sensação de que a minha
condição não advoga a favor do cristianismo, talvez lhe sirva de refutação até.
Incapaz de proselitismo, gosto de apologetas, como C.S. Lewis. As minhas
preferências literárias conspiram contra o meu calvinismo mediterrânico:
Chesterton, Graham Greene, Evelyn Waugh e, sobretudo, Flannery O’Connor, todos
católicos romanos.
Last but not least. Sou casado com a ilustradora e designer
Abigail Ascenso, a quem devo mais do que sou capaz de dizer, e pai de um menino
de um ano e meio chamado Benjamim – my biggest accomplishment!