24/07/2019

Pedro Sobrado, por ele mesmo

Há semanas, por causa de uma entrevista televisiva, pediram-me uma nota biográfica que não fosse estritamente curricular, que contivesse também alguns dados pessoais. Pareceu-me um embuste escrevê-la na terceira pessoa. Saiu o que se segue. 

Nasci em 1976, no Porto, onde resido e trabalho. Sou o mais novo de três irmãos – escassos seis anos de diferença para a minha irmã Susana, cinco minutos imensos para o meu gémeo Jorge, que é hoje vereador da Cultura da cidade de Viseu. Filho e neto de metalúrgicos, não saberia dizer de que é feito o latão, o zinco ou o aço. Mas consigo sentir ainda o cheiro da limalha e das emulsões, e ouvir o ritmo sincopado da cunhagem. O facto mais decisivo da minha infância foi a conversão dos nossos pais, Ernesto e Leonor, em 1984, na Igreja Baptista. As Escrituras passaram a ser lidas em casa: muitas vezes, não entendíamos o que líamos, pressentíamos talvez a imensidão de um sentido. Ao contrário do que tão teimosamente pensam os meus amigos, não gosto de falar de religião, muito menos dessa coisa difusa e narcótica a que se dá o nome de “espiritualidade”. Mas a Bíblia permanece para mim como a sarça ardente do Monte Horeb: coisa viva que arde sem se consumir, um livro temperamental e caprichoso, com vontade própria, luz própria. As Escrituras estão no centro do meu trabalho como dramaturgista – comecei, em 2009, por esclarecer as coordenadas bíblicas de um auto de Gil Vicente – e como investigador académico: as relações perigosas entre Bíblia e literatura formam o meu campo preferencial de análise, reflexão teórica e produção ensaística.
Em 1998, concluí a licenciatura em Ciências da Comunicação da Universidade da Beira Interior, de que fui à época, passe a imodéstia, o melhor aluno. Foi uma decepção não ter sido convidado para ali ficar. Conheci dois professores excepcionais, António Bento e Edmundo Cordeiro – é a voz deles que, em alguns momentos, me esforço ainda por ouvir. Iniciei uma obscura carreira académica como assistente universitário em Bragança, onde leccionei disciplinas várias de um curso de Comunicação e, depois, também de um curso de Animação Cultural. Durante dois anos, vivi entre o Nordeste Transmontano e Lisboa, onde frequentava um curso de mestrado, desperdiçando boa parte do meu tempo de vida em camionetas da Rodoviária Nacional que sacolejavam aflitivamente IP4 acima, IP4 abaixo.
Em 2000, deixei irresponsavelmente um ano lectivo a meio para vir trabalhar no Teatro Nacional São João dirigido por Ricardo Pais, instituição de que sou um epígono ou subproduto. Desde 1996 que o TNSJ vinha a formar-me como espectador de Teatro. O final do século XX foi um período entusiasmante para as artes cénicas no Porto: com o São João, jogava-se não só a reinvenção do estafado modelo de Teatro Nacional no Portugal democrático, mas também a renovação das linguagens de cena e a profissionalização dos modos de produção e comunicação das artes performativas. O Teatro parecia emancipar-se de um atávico amadorismo, da sensação de uma obsolescência irremediável, de uma sebenta estético-ideológica velha e relha. No centro de tudo isto, a personalidade magnética de Ricardo Pais, que eu não conhecia pessoalmente. Conservo ainda, com orgulho pueril, o anúncio de jornal a que, tão pouco convictamente, respondi. Ainda hoje me parece que não detenho o perfil de competências que então se requeria.
Entre 2000 e 2005, fui assessor de imprensa do TNSJ, função rotineira e um pouco desmoralizante que, todavia, me concedeu tempo para apreender a casa e a mecânica do Teatro e, ao mesmo tempo, conhecer os autores, os encenadores, as companhias – o tempo e modo do Teatro, digamos. Ausentei-me do TNSJ por um ano, com o pretexto de fazer uma pós-graduação em Cultura Contemporânea e Novas Tecnologias da Universidade Nova de Lisboa. Voltei para reforçar o departamento de Edições, onde trabalhei doze anos ininterruptos, entre 2006 e 2018. Assumi, com João Luís Pereira, a direcção editorial da colecção de livros do TNSJ nas editoras Campo das Letras e Húmus e assegurei a coordenação de muitas outras publicações, como os Manuais de Leitura das produções da casa, colectâneas de textos, boa parte deles originais, que expandem o acesso crítico às obras e aos autores, mas também à cena, prolongando pela leitura a experiência do espectador. (Numa apreciação exorbitante, o crítico literário Luís Miguel Queirós escrevia, no jornal Público, que estes Manuais de Leitura justificariam a atribuição do «estatuto de instituição cultural relevante por direito próprio» ao núcleo editorial do TNSJ.)
O meu ingresso no departamento editorial aprofundou a proximidade com Ricardo Pais, que vivia desde 2003 uma segunda encarnação como responsável máximo do TNSJ, acumulando a direcção artística e a presidência do Conselho de Administração. Acompanhei de perto projectos como Turismo Infinito – o espectáculo quintessencial de Ricardo Pais –, fiz-lhe várias entrevistas e com ele comissariei, em 2008, Tu Judeu e Eu Judeu, um colóquio sobre O Mercador de Veneza de Shakespeare e a ‘questão judaica’. Foi a minha primeira experiência ao nível da organização de conferências e mesas-redondas, papel que assumi repetidamente nos anos que se seguiram, já com Nuno Carinhas na direcção artística do TNSJ.
Foi ele quem me inventou como dramaturgista, figura nobre na tradição teatral germânica e emprego para gente frustrada das letras na nossa. No teatro, dramaturgista pode ser tanto aquele que não escreve uma só palavra – explorando, com encenador e actores, as linhas e entrelinhas de uma peça ou estabelecendo um sentido global para ela – como aquele que constrói um guião ou texto cénico inédito, partindo de materiais pré-existentes, dramáticos e não-dramáticos: um bricoleur (ou habilidoso) que aproveita o que está à mão para propor uma coisa nova. Nesta condição, trabalhei dez anos com Nuno Carinhas em espectáculos que marcaram toda uma década de produção artística no TNSJ, começando com autos vicentinos de carácter religioso e teológico (Breve Sumário da História de Deus em 2009 e Alma em 2012), peças que boicotam o lugar-comum que vê em Gil Vicente um autor de extracção popular, cómico e chalaceiro. A parceria prosseguiu com Os Últimos Dias da Humanidade (2016), um drama majestoso e monstruoso do austríaco Karl Kraus, e Macbeth (2017), a mais aziaga tragédia de Shakespeare, culminando em Uma Noite no Futuro (2018), um teatro cheio de luz e sombras que convizinhava peças de Samuel Beckett e de Gil Vicente. Em 2014, trabalhei também como dramaturgista com Ricardo Pais, no espectáculo al mada nada, projecto que mobilizava textos de Almada Negreiros e associava um actor e uma crew de b-boys, para além de um percussionista.
Nesses anos, assegurei regularmente a organização de colóquios, conferências e debates, tomando parte neles ou assumindo a sua moderação, e envolvendo personalidades como José Tolentino Mendonça, Maria Velho da Costa, Frederico Lourenço, Pedro Mexia, António M. Feijó, Frei Bento Domingues, Luísa Costa Gomes, José Pacheco Pereira, Ricardo Araújo Pereira e Alberto Pimenta, ou alguns dos mais importantes especialistas internacionais em Shakespeare, como Michael Dobson (director do Shakespeare Institute) e Janet Adelman (University of California). Paradoxalmente, em anos marcados pela crise económico-financeira que se abateu sobre o país e afectou gravemente o TNSJ, conheci o privilégio e o luxo – leia-se, experiências de descoberta, aprendizagem e inspiração. Devo-o a Nuno Carinhas, cuja discrição é directamente proporcional ao seu talento.
No ínterim, retomei a minha actividade académica: concluí em 2014 um mestrado em Estudos de Teatro na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e inscrevi-me em doutoramento, com o propósito de escrever uma tese sobre o teatro religioso de Gil Vicente, mobilizando leituras e pesquisas realizadas ao longo dos anos. Voltei a dar aulas: sou, desde 2016, professor de literatura dramática no curso de licenciatura em Artes Dramáticas – Formação de Actores da Universidade Lusófona do Porto. É talvez a leccionar que me sinto mais feliz, isto é, que mais rapidamente me esqueço de mim próprio: a sala de aula pode, afinal, ser um recreio. Passei também a colaborar como autor, conferencista e formador com outras instituições, como a companhia Comédias do Minho, o São Luiz Teatro Municipal ou o Balleteatro Escola Profissional.
Em 2017, o Estado atribuiu-me uma bolsa de doutoramento para um período de quatro anos. Preparava-me para deixar o TNSJ quando Ministério da Cultura me convidou a assumir a presidência do Conselho de Administração da instituição, ao fim de 18 anos de casa. Mais uma vez, o Teatro perturbou os meus planos académicos. Aceitei sem sombra de hesitação, só depois fui acometido pela dúvida. É como diz um poema de Manuel António Pina: «Primeiro sabem-se as respostas./ As perguntas chegam sempre depois.» Não possuo o perfil típico de gestor público. Gosto de pensar que, tal como a personagem de Hamlet se encontra escrita mas pode ser feita de muitas maneiras, também o ‘papel’ de presidente do Conselho de Administração está escrito – fixado na lei – mas admite uma razoável amplitude de interpretação. De resto, tal como Hamlet, o presidente do Conselho de Administração do São João tem de possuir um fascínio contínuo pelo Teatro e gostar de actores. Também deve ponderar muito antes de decidir – só não pode demorar cinco actos a agir.
Esta espécie de nota biográfica não estaria completa se não mencionasse este facto: sou cristão. Inibo-me frequentemente de o dizer – não porque considere que as crenças religiosas pertençam à esfera íntima, privada: o Novo Testamento não admite tal hipótese. É, antes, a sensação de que a minha condição não advoga a favor do cristianismo, talvez lhe sirva de refutação até. Incapaz de proselitismo, gosto de apologetas, como C.S. Lewis. As minhas preferências literárias conspiram contra o meu calvinismo mediterrânico: Chesterton, Graham Greene, Evelyn Waugh e, sobretudo, Flannery O’Connor, todos católicos romanos. 
Last but not least. Sou casado com a ilustradora e designer Abigail Ascenso, a quem devo mais do que sou capaz de dizer, e pai de um menino de um ano e meio chamado Benjamim – my biggest accomplishment!