21/07/2017

Fugir, regressar (5)

Sempre que falarmos em ‘fugir’ e ‘regressar’, iremos dar — como numa rua de sentido único — à Parábola do Filho Pródigo. Assim que esta narrativa do Evangelho de Lucas é mencionada num púlpito, vêem-se logo faces compungidas à nossa volta. E, no entanto, é uma parábola escandalosa, como escandalosas são tantas das parábolas de Jesus de Nazaré. Não pretendo ser ‘polémico’. Emprego o termo escândalo na exacta acepção etimológica que um artista escandaloso como Romeo Castellucci tanto invoca: uma pedra de tropeço, uma pequenina coisa que está no meio do caminho e na qual a nossa sensibilidade ou as nossas certezas tropeçam, vacilam e — se tivermos sorte — desabam. A Parábola do Filho Pródigo é escandalosa, antes de mais, porque a Graça constitui, em si mesma, um escândalo — nada a fazer. Por vezes, é necessário raspar uma camada ressequida de piedoso kitsch para percebermos como estes textos mantêm intacta toda a sua força, toda a sua potência para escandalizar. Não é tarefa árdua. Basta, por exemplo, lembrar que tão perdulário e dissipador quanto o filho dissoluto é o pai da parábola, que não hesita em cumular imediatamente de dádivas e mimos o estouvado que regressa, o que qualquer psicólogo de tevê condescendentemente reprovaria. Perante tão insensata liberalidade, revemos no pai o filho mais novo: quem sai aos seus não degenera. Em rigor, a narrativa também poderia ter ficado conhecida como Parábola do Pai Pródigo. Imagino que, hoje, o filho mais velho conseguiria persuadir os nossos tribunais a darem o progenitor como juridicamente incapaz. De resto, se formos capazes de alguma honestidade connosco próprios, reconheceremos no filho mais velho aquelas coisas que a nós mesmos atribuímos: razoabilidade, bom senso, sentido de justiça — enfim, o putedo do demónio, como sabiam os santos. E, no entanto, a parábola comove na medida em que escandaliza. Que o filho que «partiu» do pai (v. 13) acabe por «chegar-se» a um porqueiro (v. 15) e que, tendo devorado tudo e sugado o tutano da ‘vida’, acabe numa terra onde grassa uma «grande fome» (v. 14), são apenas duas das comoventes ironias da parábola. Menciono dois outros pormenores que desde há muito me intrigam. O primeiro decorre do facto de o texto de Lucas mencionar que, estando ainda numa terra distante, o filho mais novo «torna em si» (v. 17) e delibera: «Irei ter com meu pai…» (v. 18). Trata-se de um movimento simultâneo: tornar e ir, voltar e partir. Pensaríamos que regressar a casa representaria uma capitulação, o que é, em grande medida, verdade. Mas a parábola sugere que voltar a si e retomar a liberdade própria não exclui, antes reclama ir até ao pai. (Faz-nos pensar nos santos, que, aos nossos olhos, renunciam a si mesmos, mas na verdade desenvolvem uma nova, peculiar e surpreendente personalidade. Se não estou em erro, era C.S. Lewis quem dizia que os pecadores são fastidiosamente parecidos uns com os outros quando comparados com os santos, que contrastam fortemente entre si.) O segundo passo diz respeito ao argumento que o pai emprega na conversa final com o primogénito self-righteous, que se insurge contra a obscena prodigalidade da recepção ao caçula: «Mas era justo alegrarmo-nos…» (v. 32), diz o pai. É o termo justo (cito a tradução de João Ferreira de Almeida) que aqui me comove, como se o pai puxasse o tapete ao filho mais velho, ou o deixasse sem chão — o chão da justiça. Habitualmente, contrapomos justiça e graça, como se, a todo o momento, Deus tivesse de optar por uma das virtudes. Que a graça seja justa e a justiça seja graciosa é qualquer coisa que perturba os cristalizados dualismos com que operamos e nos movemos. No final, percebemos que é este o filho perdido, um homem que perdeu inclusive a noção de estar perdido. É um fugitivo na sua própria casa.