11/02/2019

«A coisa mais profunda que Hamlet disse»

Cumpriu-se agora um ano sobre o meu início de funções como gestor público – aquilo que, no português desembaraçado das redes sociais, se designa por um tacho. O tempo, esse bem de primeiríssima necessidade, desatou a escassear e raramente tenho agora a oportunidade de me abandonar à leitura – à leitura de outras coisas que não contratos, relatórios e ofícios, géneros literários cujo protocolo eu desconhecia. Esta nova condição está, paulatinamente, a embotar-me o espírito, mas também me tornou sensível a aspectos e minudências para que, ainda há escassos meses, não me encontrava preparado ou disponível. É o caso de um pequenino passo do famigerado solilóquio Ser ou não ser de Hamlet, no qual o jovem príncipe da Dinamarca pondera sobre o suicídio e sobre aquilo que dita o seu adiamento – a aterradora hipótese de, já cadáveres, continuarmos a desejar: «Pois, nesse sono da morte que sonhos virão…?» Não fosse este terror, não faltariam razões para darmos uso a «um punhal despido», assevera Hamlet. Que razões são essas, que justificariam o suicídio? No catálogo do herói, surge, logo após a aflição de um amor não correspondido, o desgosto administrativo: «as demoras legais, a insolência dos gabinetes…» Nos seus Silogismos da Amargura, o filósofo E. M. Cioran garante que esta foi «a coisa mais profunda que Hamlet disse». Estou consciente de que Hamlet disse muitas coisas profundas, mas, na taciturna celebração do meu primeiro aniversário como gestor público, inclino-me a concordar.