04/01/2021

«No princípio era a Relação»

Múltiplas traduções têm sido propostas para esta afirmação de São João: «No princípio era a Palavra.» O termo original grego – logos – possui uma amplitude semântica quase incomensurável: significa palavra, mas também razão, inteligência, fundamento, princípio. No Fausto, Goethe traduziu o verso como «No princípio era a acção». A palavra possui um carácter performativo: acontece e faz acontecer. A palavra traz coisas da não-existência à existência, ou produz um efeito de desvelamento. Aprecio também a paráfrase irrisória que Karl Kraus propôs: «No princípio era a imprensa – e depois apareceu o mundo.» O mundo afigura-se um subproduto, uma emanação, não apenas da imprensa, mas de toda a imensa rede de comunicação que cobre hoje o que chamamos real. Mas a tradução que se me afigura justa e inspirada é a de Martin Buber, filósofo de origem judaica: «No princípio era a Relação.» Para que serve a linguagem, para que servem as palavras? Servem para informar, para transmitir uma ideia, uma ordem? Servem para organizar o meu próprio pensamento? Sabemos que o homem é um bicho que se organiza linguisticamente. As palavras servem também para retermos um olhar, a atenção do outro. Talvez as palavras sirvam apenas para que os outros fiquem connosco um bocadinho mais. No princípio é a Palavra que se quer companhia, a Palavra que se quer relação. Por alguma razão, o Anjo diz à Virgem que o menino se chamará Emanuel (Mt. 1.23), que significa: Deus connosco.