05 novembro 2025

Um ocupa no paraíso

A Casa do Pessoal do Bairro da Maceira-Liz, fundado por Henrique Araújo de Sommer, em 1936.

Há semanas, numa tarde de domingo, percorri as ruas de um lugar estranho e fascinante: o bairro da fábrica de cimentos de Maceira-Liz, fundado em 1936. Foi ali, num paraíso artificial, que Ricardo Pais passou a infância e, num certo Natal, recebeu de presente um microfone para “falar alto e ser ouvido”. Entrei livremente na Casa do Pessoal, onde Ricardo Pais se estreou, num acto de variedades, com cinco ou seis anos. O edifício parecia deserto. A sala de espectáculos, onde o pai de Ricardo Pais fez teatro como actor e ensaiador, está – como toda a Casa do Pessoal, de resto – notavelmente bem conservada. Vi a sala quase às escuras, um fio de luz apenas; vindo de onde, não saberia agora dizer. Os candeeiros e as pinturas nos frisos pareciam ainda os originais. A cortina de boca estava subida; o palco, vazio. O que ali procurava eu? Um indício, um sinal fortuito que me permitisse perscrutar Ricardo Pais, as suas sombras e incandescências? Muito do seu imaginário circula difusamente por ali, na geometria cimentada daquelas ruas e na sala de espectáculos da Casa do Pessoal. Sei que Ricardo Pais não quis lá voltar, talvez para guardar distância desse sentimento tão teatreiro, a nostalgia.
Falo de uma incógnita sala vazia, às escuras, neste Salão Nobre, repleto e iluminado, não para evidenciar a ascensão meteórica de um homem de teatro. Ricardo Pais, que fez história, ri-se da “medíocre ilusão de fazermos história”. Evoco esse lugar porque a felicidade que foi a do menino de microfone em punho, posto em cima de uma cadeira de contraplacado no palco da Casa do Pessoal, a terá revivido Ricardo Pais no Teatro Nacional São João, neste teatro que, pela sua acção, se tornou num lugar de criação livre e de suma felicidade, com actores, cenógrafos, figurinistas, músicos, escritores, tradutores, videastas, sonoplastas, desenhadores de luz, coreógrafos, ilusionistas, bailarinos, fadistas, produtores, técnicos, fotógrafos, designers, editores – pasme-se, até juristas. Aqui, Ricardo Pais sentiu-se não como o legítimo herdeiro do Éden, mas como um ocupa no paraíso – como chegou a definir-se em anos bem difíceis –, condição esta que explica a sua militância, resistência, liberalidade e optimismo ao longo dos anos.
O São João é, afinal, a casa do pessoal de Ricardo Pais, isto é, a casa da gente de Ricardo Pais, de pessoas que ele formou para o teatro e que convocou para o seu crescimento próprio, pessoas que tiveram por líquido amniótico uma cultura de auto-exigência e de generosidade, a gaia ciência que é a sua. Aqui, Ricardo Pais foi “o mestre de toda a gente com capacidade de ter mestre”, como disse Álvaro de Campos acerca do seu mestre Caeiro. Para tantos – público, inclusive – Ricardo Pais foi essa Roma de onde não se volta como se vai, para empregar uma imagem do engenheiro naval.
A casa do pessoal não é uma guarda pretoriana, um clube de fãs ou uma ordem iniciática, embora destas coisas possa colher um pouco: é uma companhia, com tudo o que a palavra evoca de engenho e esforço colectivos, um palco que solidariamente aprofunda e exorbita o seu talento próprio. Parece que inventaram uma palavra para isso: um teatro.

Excerto de um discurso proferido a 16 de Outubro de 2025, na Sessão Solene de homenagem a Ricardo Pais, no Teatro Nacional São João, Porto.

04 novembro 2025

Arsenal de aparições










fotografias de José Caldeira/TNSJ ©

Em meados do século passado era ainda comum, na Europa civilizada, o público aplaudir os figurinos na abertura do espectáculo. Subia-se o pano, a cena conquistava os olhos e os espectadores batiam palmas aos brilhos, crinolinas e drapeados, ao esplendor e ao requinte. As fotografias que José Caldeira produziu no seu querido mês de Agosto arriscam a tornar-se, no caderno de programação do Teatro Nacional São João (TNSJ), o que Roland Barthes censurava aos trajes de cena do seu tempo – lugares de evasão da atenção do espectador –, distraindo-nos do essencial: neste caso, as produções teatrais que até ao final do ano temos para oferecer. Para um semiólogo sob influência brechtiana, o figurino era um argumento num debate, um funcionário público ao serviço do gestus social da peça, o remador de Ben-Hur açoitado pela finalidade crítica do espectáculo. Aqui, os figurinos saídos do guarda-roupa de trinta anos de TNSJ são seres ociosos, nobres, exóticos, líricos, irrisórios: seduzem-nos sem pretender persuadir-nos seja do que for. Não querem ser «actuais», chiça. (Actuais são as vacas e os churros.) São intempestivas figuras do espanto, que nos interrogam ou fazem sinal, para depois regressarem ao limbo de charriots de onde se escaparam para palpar a fruta da época, provocar acidentes numa estrada perdida ou tomar um drink de fim de tarde junto à piscina.
No seu tratado moral sobre o traje de cena, Barthes prescreve que este deve esculpir o actor, tornando a sua corporeidade sensível e exemplar; se possível, lancinante. Os figurinos flagrados por José Caldeira são criminosos: livraram-se do corpo que lhes justificou a existência e de que foram, mais do que roupa ou disfarce, uma segunda pele. Não foram os actores e actrizes que os abandonaram: os trajes é que os esqueceram para sempre, habitando uma região que está para lá da salvação e da perdição. Este arsenal de aparições constitui, na nossa agenda, um poderoso lembrete, porém: não nos recorda apenas que o São João é uma casa de criação artística, à qual cabe, de resto, retomar a nobilitação e o aprofundamento dos vários ofícios teatrais, mas também um teatro de repertório, de coisas que regressam «outra vez esta noite», como o fantasma do rei Hamlet.

Excerto de um texto publicado no Caderno de Programação de Setembro-Dezembro de 2025 do Teatro Nacional São João.