Em meados do século passado era ainda comum, na Europa civilizada, o público aplaudir os figurinos na abertura do espectáculo. Subia-se o pano, a cena conquistava os olhos e os espectadores batiam palmas aos brilhos, crinolinas e drapeados, ao esplendor e ao requinte. As fotografias que José Caldeira produziu no seu querido mês de Agosto arriscam a tornar-se, no caderno de programação do Teatro Nacional São João (TNSJ), o que Roland Barthes censurava aos trajes de cena do seu tempo – lugares de evasão da atenção do espectador –, distraindo-nos do essencial: neste caso, as produções teatrais que até ao final do ano temos para oferecer. Para um semiólogo sob influência brechtiana, o figurino era um argumento num debate, um funcionário público ao serviço do gestus social da peça, o remador de Ben-Hur açoitado pela finalidade crítica do espectáculo. Aqui, os figurinos saídos do guarda-roupa de trinta anos de TNSJ são seres ociosos, nobres, exóticos, líricos, irrisórios: seduzem-nos sem pretender persuadir-nos seja do que for. Não querem ser «actuais», chiça. (Actuais são as vacas e os churros.) São intempestivas figuras do espanto, que nos interrogam ou fazem sinal, para depois regressarem ao limbo de charriots de onde se escaparam para palpar a fruta da época, provocar acidentes numa estrada perdida ou tomar um drink de fim de tarde junto à piscina.
No seu tratado moral sobre o traje de cena, Barthes prescreve que este deve esculpir o actor, tornando a sua corporeidade sensível e exemplar; se possível, lancinante. Os figurinos flagrados por José Caldeira são criminosos: livraram-se do corpo que lhes justificou a existência e de que foram, mais do que roupa ou disfarce, uma segunda pele. Não foram os actores e actrizes que os abandonaram: os trajes é que os esqueceram para sempre, habitando uma região que está para lá da salvação e da perdição. Este arsenal de aparições constitui, na nossa agenda, um poderoso lembrete, porém: não nos recorda apenas que o São João é uma casa de criação artística, à qual cabe, de resto, retomar a nobilitação e o aprofundamento dos vários ofícios teatrais, mas também um teatro de repertório, de coisas que regressam «outra vez esta noite», como o fantasma do rei Hamlet.
Excerto de um texto publicado no Caderno de Programação de Setembro-Dezembro de 2025 do Teatro Nacional São João.
