11/07/2017

O óbvio ululante

«A evidência desapareceu entre os unicórnios.» Li em tempos esta frase num livro de Roberto Calasso e nunca fiquei seguro de a ter percebido. Bem pode tratar-se de uma esfinge sem segredo, mas certo é que se alojou numa qualquer prega da minha memória e ali permanece, assomando de quando em vez. Quererá ela dizer que aquilo que se afigurava como evidente, como certo, se eclipsou para sempre? Que com o cancelamento do mítico ou do fabuloso também o óbvio se dissolveu? Exemplos não são o meu forte, mas garanto que não se trata de um problema ‘filosófico’, mas de uma questão da vida-de-todos-os-dias. O óbvio obscureceu-se aos nossos olhos. Para o apreender não basta agora ser lúcido: é preciso estar alucinado. Uma das minhas máximas preferidas de Nelson Rodrigues (a quem pertence também a expressão que dá título a esta mensagem) é a seguinte: «Só o profeta consegue enxergar o óbvio.» Podemos aprender isto também com A Carta Roubada de Poe: só um espírito excessivamente brilhante como Dupin consegue antever o que está à frente dos olhos dos outros, a saber: que a comprometedora missiva foi escondida no ar, que está oculta — à vista de todos. Assim, o óbvio.