07/09/2017

Caixa de fósforos #04: Franz Kafka


Esta caixa de fósforos mitteleuropeia mora no interior de uma caixa de pedra-sabão que está numa casa de banho cá de casa. Os fósforos têm uma cabeça púrpura (tal qual os Ohio Blue Tip) e a pequena embalagem exibe um retrato de Franz Kafka. Se não estou em erro, foi a minha irmã Susana quem, há uns anos, me trouxe esta caixinha de Praga. Sempre que abro a caixa de pedra-sabão e o olhar de Kafka se cruza com o meu, penso na terrível ironia que há no facto de o rosto de um homem que rogou que lhe queimassem a obra após a morte figurar agora numa caixa de fósforos. Como é sabido, o espólio de Kafka não foi destruído: Max Brod, o amigo e fiel depositário, não cumpriu a última vontade do escritor. Numa carta a Scholem, Walter Benjamin sugere que Kafka só confiaria este auto-de-fé àquele que ele sabia que nunca seria capaz de o executar. Em todo o caso, de cada vez que risco um destes fósforos e a coroa da pequena haste irrompe numa chama furiosa, lembro-me desse ímpeto incendiário, do profundo mal-estar de Kafka em relação à própria obra — uma herança demasiado pesada para legar ao mundo — e da relação de amor/ódio que alguma literatura pode gerar. Lembro-me de tudo isso, sim, e acendo duas ou três velas na casa de banho para criar ambiente, antes que a chama kafkiana se vingue em mim, ateando-me a ponta dos dedos.

Post scriptum Num ensaio dedicado a Kafka, Georges Bataille refere-se a um inquérito lançado por um semanário comunista que colocava uma sugestiva interrogação: Será preciso queimar Kafka? Tratava-se, evidentemente, de uma provocação, mas Bataille explica que não é destituída de sentido: «Estas chamas imaginárias ajudam até a compreender melhor aqueles livros: são livros para o fogo, objectos aos quais falta na verdade atearem fogo, estão ali mas para desaparecer; como se já tivessem sido aniquilados.»