16/09/2017

Parar o tempo

Quando jovem, muito jovem, o meu pai trabalhou como relojoeiro: consertava relógios. Muitos anos depois dessa transitória ocupação, era ainda capaz de desmontar e remontar a máquina de um relógio sem que sobejassem peças. Gostava de abri-los e ponderar o seu pasmoso maquinismo. Faz-me lembrar o pai de A Terra Onde o Tempo Parou, de Bohumil Hrabal, que desmontava o motor de um Škoda 430 apenas para saber «porque é que aquela máquina trabalhava com tanta perfeição, porque é que não tinha falhas» — «o seu trabalhar era tão perfeito que tirava o sono ao pai». Lembro-me que, já depois de sofrer um AVC que lhe tolheu a destreza e o emudeceu, o meu pai pediu a um amigo que abrisse o relógio que trazia no pulso, apenas para confirmar a suspeita de que o relógio do amigo não passava de uma réplica ordinária de um Breitling. Agora que falo nestas coisas, recordo-me também de que no ano 2000 — quando eu leccionava Semiótica em Bragança (que Deus me perdoe) — perdi um relógio (um Certina?) que o meu pai me emprestara para a vigilância de um exame. Ficou esquecido numa daquelas camionetas da Rodoviária Nacional que sacolejavam aflitivamente IP4 acima. Nunca cheguei a indemnizar o meu pai dessa perda. Acho que ele também não o quereria. Preferiria por certo que eu lhe desse um pouco mais do meu tempo. Porque quando alguém que amamos nos dá do seu tempo, o nosso detém-se.