20/09/2017

Suspender o dia

Nos últimos anos, tenho trabalhado de perto com um encenador, Nuno Carinhas, cujos espectáculos abrem frequentemente com uma cena não escrita, uma cena que o texto não prevê. Forneço um exemplo geminado, digamos: no início de Alma (2012), de Gil Vicente, o espectador entrevia na semiobscuridade uma série de corpos estendidos, em posição fetal: personagens à espera do seu tempo?, cadáveres juncando um campo de batalha? Algo análogo ocorria na abertura do Macbeth estreado em Junho deste ano: a cena figurava um território de desolação com corpos jacentes, ou um caos primordial — o tohu e bohu do teatro, com cabos suspensos e ferros no chão — onde se formavam figuras. Que pretendiam estas cenas de abertura, estas antecâmaras da acção? Produzir uma cesura com o nosso tempo, suspender o dia, e instaurar o espaço-tempo do ritual. O teatro estabelece uma relação muito particular com o tempo, mas reencontramos este desígnio também fora dele: um escultor como Rui Chafes assevera que «não existe arte se não houver a ambição de parar o tempo». Talvez neste ponto radique o elemento revolucionário de alguma arte. Um incidente ocorrido no primeiro desses três dias gloriosos de 1830 que ficaram conhecidos como a Revolução de Julho pode ajudar-nos a reconhecê-lo. Walter Benjamin relata esse incidente nas suas teses sobre a filosofia da História: «Chegada a noite do primeiro dia de luta, aconteceu que, em diversos locais de Paris, várias pessoas, independentemente umas das outras e ao mesmo tempo, começaram a disparar contra os relógios das torres.» Os revolucionários não queriam acelerar o tempo, mas pará-lo: «Alvejavam os relógios para suspender o dia.»