18/10/2017

«La commedia è finita.»

«A palavra tragédia é uma palavra preciosa.»* Converteu-se em moeda corrente, empregamo-la para todo o despropósito. Mas confiamos nela — ou confiamo-nos a ela — quando sentimos a necessidade de conferir algum valor, alguma dignidade à catástrofe, ao infortúnio, à devastação. Quando a usamos, queremos dizer: este sofrimento é excepcional. Na edição de ontem do jornal Público — a edição que exibia na capa a fotografia de Adriano Miranda que abusivamente postei aqui —, a palavra tragédia ocorria 17 vezes. (Não contabilizei a ocorrência do adjectivo trágico/trágica.) Mas ocorria também, uma única vez, a palavra comédia. Figurava na última página do jornal, no título da crónica que João Miguel Tavares escreveu sobre o cataclismo deste domingo: «Uma comédia chamada Estado português». A palavra não voltava a aparecer no corpo do texto (embora o termo tragédia sim) e o título não era propriamente explicado, embora chegássemos lá facilmente. Não vou pronunciar-me sobre o teor do artigo, não é isso que me interessa. A mim — que esta manhã tive de falar aos meus alunos sobre os conceitos de tragédia e comédia na Antiguidade clássica —, chamou-me a atenção que um jornal enxameado pela palavra tragédia terminasse, ironicamente, com a palavra comédia. Quem visse diante de si, no café ou no metro, alguém a segurar o jornal aberto, poderia ler, à direita, a manchete «Quatro meses, mais de 100 mortos» encimada pelo grande plano de um velho radicalmente só num cenário de desolação e, logo ao lado, um título com a mais inesperada das palavras: comédia. É tudo uma questão de perspectiva, como sugere a máxima de Chaplin: Life is a tragedy when seen in close-up, but a comedy in long-shot? Numa ópera intitulada Os Palhaços, o que é cómico no palco revela-se trágico na vida: La commedia è finita.

* Adrian Poole, Tragedy: A Very Short Introduction. Oxford: Oxford University Press, 2005.