20/10/2017

Tempos difíceis*

Hesitei longamente em escrever aqui sobre os acontecimentos de domingo. Seria deplorável usar o sofrimento, a agonia e a devastação para exercícios de estilo. Porém, de que outra coisa se pode falar sem que o silêncio sobre o dia 15 de Outubro pareça — ou seja, de facto — um sinal de indiferença face ao horror? Lembro-me de um punhado de versos de Brecht: «Que tempos são estes, em que/ Uma conversa sobre árvores é quase um crime/ Porque traz em si um silêncio sobre tanta monstruosidade?» Curiosamente, B.B. reincidiu muitas vezes nesse crime, e estamos-lhe gratos por isso. Quando os mais terríveis acontecimentos dilaceravam a Europa, dedicou alguns dos seus mais belos textos a árvores: abetos que de manhãzinha são cor de cobre, macieiras em flor, as bagas negras de um sabugueiro da infância, uma ameixeira que nunca deu uma ameixa. Há mesmo um poema que ensina a trepar às árvores: «Esperai pela noite entre a folhagem...» Dá-se agora que falar sobre a monstruosidade do passado domingo implica também conversar sobre árvores. Condescendam que o faça, reconhecendo que não é a face mais terrível do desastre: perderam-se vidas, e muitos viram-se depredados não apenas de tudo quanto possuíam, mas também daqueles que amavam.
Neste dia 15, desapareceu um dos lugares mais importantes para a Abigail e para mim: as matas da zona da Marinha Grande e de São Pedro de Moel, matas que fazem parte do Pinhal de Leiria, e nas quais, em criança, a Abigail passou muitas tardes de domingo com os pais e as irmãs. Ao longo destes vinte anos juntos, visitámos em diversas ocasiões esse lugar. Tomo agora consciência de que não o fazíamos há muito tempo, mas lembro-me bem de que, num certo período, quando íamos a Leiria, sobrepesávamos o carro – na época, um VW Polo de apenas 999 cc – com uma inusitada quantidade de garrafões que enchíamos nas fontes de água dessas matas. Foi, aliás, por ali que nos conhecemos, num local chamado Água de Madeiros, corria o ano da Graça de 1995. Não possuo o virtuosismo que me habilitaria a descrever essas matas com propriedade. Percorrendo-as a pé ou mesmo de carro, era possível sentir o poder do lugar, o modo como, a cada curva, surgiam maciços de árvores, clareiras, miradouros, perspectivas. Não era apenas essa qualidade fotográfica que fazia a beleza do lugar. Foi ainda todo um luxuriante património de sons e cheiros que desapareceu de modo irreparável no passado domingo. Aquele era também um sítio onde — com ganho — podíamos permanecer de olhos fechados. O pequeno Benjamim que aí vem não irá já conhecer esse lugar como a mãe, em criança, o conheceu — e isso encheu-me de uma tristeza difícil de vencer. É também como diz um verso de Brecht: os incêndios precederam o filho. Não iremos dormitar sob um tecto de folhagem densa num dia de Sol, tendo o restolhar das árvores por banda sonora, nem caminhar por ali fazendo estalar os gravetos sob os nossos pés. De facto, é como reza o apólogo de Hegel: É só na escuridão que a coruja de Minerva inicia o seu voo. Quer dizer: apenas quando alguma coisa se perde de modo irreparável nos tornamos aptos a fazer-lhe justiça.

* Título de um dos poemas de Brecht sobre árvores. A propósito deste poema, Roberto Calasso escreve que «nenhuma denúncia explícita dos males do mundo possui a intensidade destes poucos versos indirectos e reticentes».