26/10/2017

O demónio, esse citador

Satan addressing his potentates (ca. 1816-1818), de William Blake

Ouvi na televisão que um juiz desembargador do Porto citou a Bíblia para justificar as agressões de um marido traído (e — terei ouvido bem? — de um ex-amante) a uma «mulher adúltera». Isto nada prova contra a Escritura, e não chega sequer a agravar a sua fama. (O nosso Nobel da Literatura estimara-a já como um «manual de maus costumes».) Não esqueçamos que o próprio diabo cita o texto sagrado. É o que sucede no episódio das tentações de Jesus no deserto, quando o demónio cita escrupulosamente o Salmo 91. É, aliás, este episódio dos Evangelhos que António, esse cristão tão caridoso, tem em mente ao advertir Bassânio contra o judeu Shylock, que habilidosamente lançara mão de uma narrativa veterotestamentária sobre Jacob e o sogro deste, Labão:

     O diabo cita a Escritura p’ra seu propósito.
     A alma vil gerando testemunho santo
     É como um vilão pondo no rosto um sorriso,
     Maçã de bom aspecto podre no seu âmago.
     William Shakespeare — O Mercador de Veneza (trad. Daniel Jonas)

O demónio é um citador. Tem sempre na ponta da língua um versículo bíblico adequado à circunstância. Nos acampamentos de Verão evangélicos, arrebataria o primeiro prémio nessa modalidade olímpica ainda não reconhecida que dá pelo nome de destreza bíblica. Vladimir Soloviev — poeta e filósofo russo da segunda metade do séc. XIX que se tornou especialmente próximo de Dostoievski — vai mais longe ainda: numa novela, figura o Anticristo a ser distinguido com o doutoramento honoris causa em Teologia Bíblica pela Universidade de Tübingen. Evidentemente, demonizar o juiz desembargador seria não apenas excessivo como inteiramente inadequado, pois outorgaria à obtusidade e ao cretinismo um glamour que só ao Satanás de Milton e Blake é devido. Em todo o caso, sempre que me dizem que alguém citou a Bíblia, estremeço. Eu próprio cito amiúde a Escritura, o que talvez devesse pôr em guarda aqueles que comigo ainda admitem conviver.