30/10/2017

Coisas do diabo

Toda a citação é diabólica. Não apenas a citação truncada, a citação que corrompe o texto, a citação que mente. O diabo não é somente mentiroso, caluniador, má-língua. O grego diábolos significa também aquele que separa, aquele que divide. (Daí que toda a máquina de divisão ou duplicação, como o espelho e a fotografia, tenha sido historicamente tomada como demoníaca.) Ao citarmos, ainda que com académico escrúpulo — ou sobretudo com académico escrúpulo —, manifestamos uma vocação diabólica porque a citação opera uma excisão, separando uma proposição do discurso que lhe deu origem e sentido. Tal divisão é efectiva, e redunda virtualmente no esquecimento do próprio texto em que a frase citada ocorre. Um teólogo católico a que voltei este Verão, o sentimental Henri Nouwen, diz que o desígnio do diabo é precisamente o de produzir um esquecimento em nós: o esquecimento de uma origem. Isto parece-me igualmente válido para a citação.