31/10/2017

Que diabo podemos fazer senão citar?

No dia em que se celebram os 500 anos da afixação das 95 teses de Lutero na porta da igreja de Wittenberg, ocupo-me com uma ociosa bizantinice: a natureza diabólica da citação. (Suponho que seja contra estas «genealogias e fantasias intermináveis» que o apóstolo Paulo adverte o jovem presbítero Timóteo...) A perplexidade de um dos raros hóspedes aladosaka leitores — deste blogue em relação ao post anterior dá-me o ensejo para prolongar tão edificante assunto.
O diabo é não só um citador como ele próprio é, de um certo ponto de vista, uma corruptela: uma citação truncada de Deus. (Alguma literatura mostra-nos o diabo como uma espécie de macaquinho de imitação de Deus e alguns teólogos defendem que todo o vício é, no fundo, uma virtude deturpada.) O que escrevi na publicação anterior dizia talvez menos respeito à teologia do que à etimologia, resumindo-se no seguinte: toda a citação é, em si mesma, diabólica porque divide e duplica. A incompreensão que me foi manifestada prendia-se, todavia, com um ponto específico da argumentação: por que razão a citação, ainda que exacta, produz o esquecimento da origem? O que a citação faz não é precisamente o contrário: apontar para ela, reconduzindo-nos ao texto de que foi extraída e ao autor que a proferiu? Explico-me, recorrendo à cobardia do exemplo.
Por toda a parte se debita um determinado passo de Samuel Beckett, passo que está, aliás, em vias de se tornar uma atroz banalidade: «Tentar outra vez. Falhar outra vez. Falhar melhor.» Poucos sabem que pertence a um dos últimos trabalhos de Beckett, intitulado Worstward ho (há uns anos, Miguel Esteves Cardoso traduziu-o como Pioravante Marche), e menos ainda o terão lido. Se o fizessem, mostrar-se-iam certamente menos prontos a citar essa passagem como quem invoca uma máxima motivacional numa sessão para jovens empreendedores. Por que não também citar estoutro passo: «Tentar outra vez. Falhar outra vez. Melhor outra vez. Ou melhor pior. Falhar pior outra vez. Ainda pior outra vez. Até fartar de vez. Vomitar de vez. Partir de vez.»? Um exemplo pessoano, ainda: «Minha pátria é a língua portuguesa.» Faz agora dez anos, nos ensaios de mesa de Turismo Infinito, António M. Feijó dizia-nos que não há «político de helicóptero» que não cite esta passagem do Livro do Desassossego, fazendo-nos crer que diz uma coisa que não diz. Mas, uma vez restituída a frase ao seu contexto original, ela adquire um sentido imprevisto e inteiramente diverso daquele com que é tão enfaticamente citada: «Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente.»
Nestes dois casos, a citação parece precisamente redundar no esquecimento do texto, não apenas porque o dispensa, mas porque corrompe ou rasura aquele que é o sentido originário. Daí o seu carácter diabólico porque, teologicamente, o diabo é não só o corruptor da alma, mas também aquele que visa o apagamento de uma imagem e semelhança original, isto é, divina (Génesis 1:26). Não deixa, contudo, de ser paradoxal — e de causar um certo embaraço — que para demonstrar o carácter diabólico da citação precisemos, desgraçadamente, de recorrer a citações. Mas que diabo podemos fazer senão citar?