09/10/2017

Morrer acima das minhas possibilidades

Reflexão dominical. «Não podemos continuar a viver acima das nossas possibilidades.» Durante os anos em que vigorou o Programa de Assistência Económico-Financeira, vivemos sob este refrão mortificante como um cilício. Lembrei-me dele por estes dias, ao assistir a um directo televisivo do lamentoso Conselho Nacional em que Pedro Passos Coelho anunciou a sua despedida da liderança de um partido em tempos conhecido como PSD. A sentença — porque de uma sentença se tratava, de facto — é-lhe frequentemente atribuída, mas nesses anos de 2011 e 2012 era um credo fervorosamente partilhado (e metralhado) por uma caterva de insignes figuras: o Presidente da República de então, economistas e conselheiros de Estado, para além dos diáconos da Opinião, essa religião babilónica. A asserção — uma elementaríssima manifestação de sensatez — tornou-se-nos odiosa e é hoje apenas proferida com escarninha ironia. Talvez haja nela algo de efectivamente medíocre, como viu Oscar Wilde: Anyone who lives within their means suffers from a lack of imagination. (Até para gastar dinheiro é preciso talento.) Não é, contudo, esta máxima de Wilde que tanto me apraz opor ao judicioso e maçador «Não podemos viver acima das nossas possibilidades», mas uma formulação que estimo muito, embora por razões que não estariam no espírito do autor. Conta-se que, ao agonizar, Oscar Wilde terá pedido champagne (o que também Tchékhov terá feito), declarando: «Morro acima das minhas possibilidades!» Ora, é precisamente isso que todo o protestante espera. Na hora da morte, estarei de mãos vazias — nenhum feito, nenhuma boa obra, nenhum mérito, nenhum bem, nada para apresentar em meu favor. E, no entanto, espero receber tudo: tudo a que não tenho direito. Morrerei, enfim, acima das minhas possibilidades. São Paulo, Agostinho, Lutero e muitos outros chamaram a isso Graça. É como diz o Salmo 23: O meu copo transborda.