12/10/2017

O grande ausente

O Pelicano, de Strindberg, encenação Manuel Tur | foto João Tuna

Em vez da «sala de visitas» prevista por Strindberg, a cena figura um imenso espelho em estilhaços. As personagens de O Pelicano ferem-se, dilaceram-se, mas não sangram. Sofrem hemorragias internas. O sangue é metafórico: «Tal como o pelicano, que com o seu próprio sangue alimenta os filhos…» O Padre António Vieira chamava ao espelho diabo mudo. Este espelho quebrou-se de modo irreparável – e agora o demónio desatou a falar.
Não nos é dado assistir ao estilhaçamento: o que o provocou? A morte do Pai, que veio quebrar o polido continuum da vida familiar. Embora nunca compareça como fantasma – não é visível nem ao espectador nem a qualquer das personagens –, o Pai está sempre presente: na chaise longue em que «soltou o último suspiro» e que agora a Mãe se vê forçada a adoptar como cama; na cadeira de baloiço em que costumava instalar-se e que se move várias vezes ao longo da representação, aterrorizando a Mãe. Não podemos imputar essa movimentação a causas sobrenaturais; as didascálias de Strindberg fornecem explicações razoáveis. Mas o Pai revela-se o medium da verdade: é através de uma carta póstuma, de uma carta que chega da morte, que os filhos despertam do sono (essa «morte contrafeita», como se diz no Macbeth) e acedem à verdade sobre a vida. Fredrik descreve-o nos termos de uma aparição: «A Gerda e eu fomos visitados por uma alma do outro mundo.» Num ensaio que dedica a um descendente de Strindberg – Eugene O’Neill –, Jean-Pierre Sarrazac faz notar: «No teatro, é preciso procurar o ausente, o Grande Ausente, aquele que, a partir de um limiar de invisibilidade, orienta o drama.» Ao longo de toda a peça, a Mãe toma-se pelo pelicano, mas no final perceberemos que a personagem titular não chega sequer a entrar em cena: «Ele, afinal, é que era o pelicano.»

Excerto de um texto publicado no programa de sala de Retrato de Família (Teatro Nacional São João, 2017). O Pelicano estreia hoje no Teatro Carlos Alberto e mantém-se em cena até ao dia 21 de Outubro.