21/04/2019

«Onde passa a corrente de ar do inexplicável»


Deixo por momentos ao menos as cerimónias e os ritos da mais santa das semanas cristãs e tento extrair dos textos sagrados que na igreja se lêem, mas nem sempre se ouvem, as partes que nos impressionariam se as encontrássemos em Dostoievski ou Tolstoi, ou em qualquer biografia ou reportagem sobre a vida de um grande homem ou de uma grande vítima. Em suma, o desenrolar de uma das mais belas histórias do mundo.
Um prólogo quase irónico: uma pobre gente chega à capital com o seu mestre bem-amado, aclamado pela mesma multidão que em breve o repudiará. Uma refeição de festa frugal: um traidor adivinhado entre os doze convivas; um ingénuo que proclama alto a sua fidelidade e será o primeiro a fraquejar; o mais jovem e mais amado apoiado com indolência ao ombro do mestre, talvez envolto naquele casulo dourado que sempre protege a juventude; o mestre, isolado, pela sabedoria e pela visão, no meio dos ignorantes e dos fracos que são o que ele encontrou de melhor para o seguirem e continuarem a sua obra.
Caída a noite, o mestre ainda mais só, no canto de um pomar que domina a cidade onde todos, excepto os seus inimigos, o esqueceram: as longas horas negras onde a presciência se convola em angústia; a vítima a orar para que a prova esperada lhe seja poupada, mas sabendo que o não pode ser e também que, «se tivesse de o refazer», faria o mesmo caminho; «a alma eterna» que observa o seu voto «apesar da solidão da noite». (Que Aragon e Rimbaud nos ajudem a compreender Marcos e João.) Enquanto ele sofre, os seus amigos dormem, incapazes de compreender a urgência do momento. «Não podeis vigiar um momento comigo?» Não: eles não podem; eles têm sono; e aquele que os chama não ignora que virá o tempo em que estes infelizes terão também de sofrer e vigiar.
A chegada do bando, para prender o acusado. O ardente defensor que se arrisca a piorar as coisas e se desdirá logo a seguir. Os dois aparelhos, o eclesiástico e o laico, incomodados, passando-se mutuamente o acusado; o eterno diálogo da fé e do cepticismo completando-se um ao outro: «Quem ama a verdade, escuta-me.» – «O que é a verdade?» O alto funcionário ultrapassado que gostaria bem de lavar as mãos deste caso e entrega à multidão a escolha do preso a libertar para a festa próxima, e o que ela escolhe é evidentemente a vedeta do crime, não o justo inocente. O condenado, insultado, flagelado, atormentado, por brutamontes que são provavelmente bons pais de família, bons vizinhos, boas pessoas, obrigado a arrastar a trave do seu martírio como, nos campos, por vezes os prisioneiros arrastavam uma pá para cavar a sepultura. O pequeno grupo de amigos que ficou com o supliciado, aceitando a humilhação e o perigo que decorrem da fidelidade. A algazarra dos guardas que disputam entre si a túnica esvaziada, como em tempo de guerra os camaradas de um morto lutam às vezes por um cinturão ou umas botas.
A ternura revelando-se nas recomendações aos seus, por parte de alguém até então demasiado absorvido pela sua missão para ter tempo de pensar neles: o moribundo dando como filho à sua mãe o melhor amigo. (Assim hoje, por toda a parte, as últimas cartas de condenados ou soldados partindo em missão de que não voltarão, cheias de conselhos sobre o casamento da irmã ou a pensão da velha mãe.) A troca de palavras com um condenado de delito comum em quem se encontrou um homem de coração; a longa agonia ao Sol, ao vento agreste, à vista da multidão que, pouco a pouco, se vai porque aquilo nunca mais acaba. A exclamação parece indicar que, para que tudo se cumpra, o desespero é um estado por que se tem de passar. «Porque me abandonaste?» E, horas depois, a esta pobre gente será dada como esmola uma sepultura para o seu corpo, e as sentinelas (há que desconfiar dos ajuntamentos) dormirão ao pé do muro como antes dormiram junto do amigo vivo e angustiado os seus humildes companheiros fatigados.
E que mais? As horas, os dias, as semanas que escorrem entre o luto e a confiança, entre fantasmas e Deus, e nessa atmosfera crepuscular onde nada é totalmente confirmado, verificado, concludente, mas onde passa a corrente de ar do inexplicável, como alguns desses pobres relatórios de sociedades para o avanço das ciências psíquicas, tanto mais perturbantes quanto são inconclusivos. A antiga meretriz vinda ao cemitério orar e chorar e julgando reconhecer aquele que perdeu no jardineiro. (Que melhor nome poderia dar-se àquele que faz crescer tantas sementes na alma humana?) E mais tarde, quando a emoção, como dizem os relatórios da polícia, acalmou, os dois fiéis pela rua fora, a quem se junta um simpático viajante que aceita sentar-se com eles à mesa da hospedaria, e desaparece no momento em que eles julgam reconhecê-Lo. Uma das mais belas histórias do mundo termina com os reflexos de uma Presença, bastante semelhantes a nuvens que o Sol já posto ainda ilumina.
«Eu sentir-me-ia mais perto de Jesus se ele tivesse sido fuzilado em vez de crucificado», dizia-me um dia um jovem oficial vindo da Guerra da Coreia. Foi para ele e para todos aqueles a quem é difícil encontrar o essencial por debaixo do acessório do passado que aceitei o risco de escrever o que precede. 

Marguerite Yourcenar – “Sequência da Páscoa: uma das mais belas histórias do mundo” (1977). In O Tempo, esse grande escultor. Trad. Helena Vaz da Silva. Lisboa, Difel, 2001, pp. 107-109.