06 maio 2025

Bartleby e o SARS-CoV-2

Excerto de "Bartleby, privacidade e convívio", introdução a Bartleby, o Escrivão: Uma História de Wall Street (Penguin Clássicos, 2022).

Thin man wearing a derby (pormenor), tela de John Armstrong
usada como imagem da capa na edição de Bartleby da Penguin Clássicos

Canecas, t-shirts, crachás, bonés, autocolantes, cadernos, tote bags, ímanes para o MacBook ou a porta do frigorífico: a formulação I would prefer not to enxameia o mundo, alimentando hoje lucrativas linhas de merchandising. Aquele que delas mais deveria beneficiar – o jeito que lhe daria nos momentos de aperto, que também os teve – já não pode do irrisório slogan extrair qualquer proveito. Falo de Herman Melville, o autor de Moby-Dick, fracasso editorial de 1851 que se converteria, postumamente, na epopeia da nação que erigiu o sucesso como medida de todas as coisas. Esse artigo da Fama, a glória póstuma, nada aproveita ao seu titular. A proliferação contemporânea da «Fórmula» – palavra com ressonâncias mágicas e sacramentais, também químicas e matemáticas, empregue por Gilles Deleuze e Giorgio Agamben para designar a frase infalível com que o escrivão Bartleby passa, a dada altura, a responder a qualquer razoável solicitação –, a sua reprodutibilidade e veloz propagação, mesmo entre aqueles que não leram a novela de Melville, lembra a eficácia de um vírus. Deleuze assinala o carácter altamente contagioso desse imperativo categórico às avessas: «Preferia que não.» Toda a população do escritório apanha a palavra prefer, aplicando-a involuntariamente nas mais diversas ocasiões, por vezes a despropósito. «Então, também contraiu a palavra», diagnostica o homem de leis quando a ouve sair da boca de um dos seus mangas-de-alpaca. O mantra de Bartleby é inoculado no espírito dos que o ouvem, fagocitando-lhes a linguagem e o pensamento, como chega a temer o patrão-narrador, alarmado pela disseminação epidémica da «estranha palavra» que ninguém antes empregava. I would prefer not to é, na sua própria génese, um meme: a unidade mínima de um sistema que é copiada, imitada e se espalha à velocidade da luz, desencadeando novas variantes. Já ouvimos rumores de microrganismos que se escapam do ambiente controlado dos laboratórios. O vírus de Bartleby escapuliu-se do ecossistema ficcional de um escritório de Wall Street e tomou conta do real, sabendo estabelecer com o hospedeiro uma relação estável. Agora, como diria o beatnik William Burroughs, pode desdenhar de vírus de baixo coturno como a varíola ou o SARS-CoV-2, entregando-os ao Instituto Pasteur.

01 maio 2025

Jonas Mekas, o olhar que não mudou

Excerto de um texto publicado no livro Outras Revoluções, Cinema, org. Edmundo Cordeiro (Museu e Bibliotecas do Porto, 2025). O texto resultou da apresentação de Walden, de Jonas Mekas, no dia 18 de Julho de 2024, no Auditório da Biblioteca Municipal Almeida Garrett, Porto.

Walden

Paradise Not Yet Lost

This Side of Paradise

As I Was Moving Ahead Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty

Na introdução a The Defendant (1901) — obra em que faz a apologia dos planetas e do nonsense, passando pela heráldica, as pastoras chinesas, as coisas feias e as informações úteis –, G.K. Chesterton escarnece tanto da especulação teológica acerca da localização exacta do Paraíso como da nossa secularizada tendência para considerar o mundo «tão perdido como o Éden e tão afundado quanto a Atlântida». Para Chesterton, a grande queda da história humana, tipificada pela queda de Adão, decorre da irresistível propensão para subestimar o meio ambiente em que nos encontramos e movemos. «Muito provavelmente ainda estamos no Paraíso. Talvez só o nosso olhar tenha mudado.»

O que as três horas de Walden nos oferecem é um olhar que não mudou. Jonas Mekas ainda está no Paraíso, preservando a alegria e o espanto diante das coisas, diante do facto pasmoso de haver mundo, em vez de nada. Apetrechado com a sua Bolex, ele é o anjo que filma o princípio do mundo, um mundo em estado nascente, infantil, pletórico. Walden não nos leva para os bosques de Thoreau, mas está repleto de crianças e árvores, celebrando as cenas de rua e a passagem das estações, filmando amigos em torno de uma mesa, números de circo, a festa de um casamento. Walden é feito de clarões do Paraíso, por vezes somos encandeados pela beleza.

Que o realizador américo-lituano seja um deslocado, como tantos outros que os tumultos do mundo continuam a gerar, não ameaça esta hipótese. Mekas viu-se forçado a abandonar a terra natal, mas não foi expulso do Paraíso; ainda que, com o irmão Adolfas, tenha vivido em campos de refugiados antes de, em 1949, chegar aos EUA, o seu olhar não foi obnubilado, permanecendo intacto e disponível para a primeira vez das coisas. O olhar de Jonas Mekas não envelheceu nem envileceu. Daí que a ideia de Paraíso, há muito varrida do discurso teológico, seja tão prontamente associada ao cinema de Mekas: Fragments of Paradise (2022) é o título do documentário que K.D. Davison dedica à vida e obra do realizador, e o próprio já baptizara um filme inteiramente dedicado aos acontecimentos de 1977, organizados em torno da figura de Oona, a filha de três anos, com o título Paradise Not Yet Lost. Vinte anos depois, até o delicado close-up à família Kennedy, rodado pouco tempo após o assassínio de J.F.K., receberá por título This Side of Paradise. Um outro título de Mekas serve-nos de descrição à experiência de atravessar os planos e imagens das seis bobines de Walden como quem entra numa floresta sem medo de nela se perder: As I Was Moving Ahead Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty (2000).

Talvez num aspecto Walden se distancie da noção de Paraíso. O filme de Jonas Mekas é um diário e está cheio de época, enquanto o Paraíso desconhece o tempo. Na teologia bíblica, o Paraíso é um lugar sem tempo, anterior ao tempo, está do lado da eternidade. A personagem do Tempo dos mistérios medievais só está autorizada a entrar em cena após a Queda, após a expulsão do Paraíso, e a Morte é figurada como a «triste paridura» de Adão e Eva, irremediavelmente caídos no mundo (Gil Vicente, Breve Sumário da História de Deus, 1527). Há quem se acerque de Walden com um interesse histórico preciso, pois ele oferece um luxuriante catálogo das figuras da cultura underground na Nova Iorque da década de sessenta: Allen Ginsberg, Stan Brakhage, Gregory Markopoulos, Andy Wharol, os Velvet Underground, John Lennon e Yoko Ono, entre tantos e tantos outros, mas também aparições inesperadas, como a de Carl Dreyer, de visita aos EUA. Mas, embora Walden seja precioso para a sociologia da cultura, não nos devemos enganar: não há hierarquia entre o casal Lennon/Ono e a barata que se esforça por atravessar a rua. A mesma viva atenção, a mesma alegria anima estes planos. O filme de Mekas excede a função documental, possuindo uma vocação poética e comunicando uma contagiante energia vital: «Não estou a documentar a realidade, estou a celebrar a realidade», dizia Jonas Mekas, que sempre se recusou a falar das imagens dos seus filmes como memórias do que viveu e foi perdendo com o tempo. The past cannnot be presented, escreveu Thoreau. O realizador ambicionava emancipar do chronos todas essas imagens para as celebrar no presente em que são vistas. O deus de Mekas é o kairós — o tempo oportuno, o instante favorável —, que a teologia cristã associa ao “tempo de Deus”. É como propõe C.S. Lewis em The Screwtape Letters (1942): «O presente é o ponto em que o tempo toca a eternidade.»

Sonhar a Bíblia: "Descida da Cruz", de Domingos Sequeira

Excerto de uma comunicação proferida no dia 19 de Maio de 2025, no Museu Nacional Soares dos Reis, no âmbito da sessão de Um Objecto e Seus Discursos dedicada a «Descida da Cruz», de Domingos Sequeira (org. Museu do Porto)


Pormenor de Descida da Cruz (1827). Fotografia: MMP/MNSR/Rui Pinheiro.


«Eu nunca li a Bíblia, eu sempre a sonhei.» Esta declaração de Marc Chagall diz muito da minha relação com o quadro Descida da Cruz, de Domingos Sequeira. Por mais do que uma razão, como tentarei explicar. Antes de mais, assim me parece, um halo onírico, uma atmosfera sonhada caracteriza a obra de Sequeira. Vemos a cena bíblica como que por dentro de um sonho. Faz-me lembrar, sem que saiba explicar bem porquê, os poemas bíblicos, de sabor oriental e pendor opiáceo, de Else Lasker-Schüler, poetisa judia alemã da primeira metade do séc. XX. Também ela nunca leu a Bíblia: sonhou-a, alucinou-a. Leio-vos parte de uma das suas baladas hebraicas, intitulada “Reconciliação”, como amostra:

Há‑de uma grande estrela cair no meu colo…
A noite será de vigília,

E rezaremos em línguas
Entalhadas como harpas.

Será noite de reconciliação –
Há tanto Deus a derramar-se em nós.

Crianças são os nossos corações,
Anseiam pela paz, doces-cansados.1

Ocorre-me que, na passagem para o século XX, o teatro passou a suspeitar do enredo – de enredos elaborados, enxameados de personagens, eventos, reviravoltas, como sucede em Molière ou Shakespeare –, privilegiando a atmosfera: die Stimmung, para empregar um conceito filosófico frequentemente traduzido por “tonalidade afectiva”. Na Descida da Cruz, temos porventura as duas coisas: enredo e atmosfera. Quer dizer: Domingos Sequeira leu a Bíblia, e sonhou-a: estudou e alucinou. O seu quadro não é só uma análise da matéria sagrada, é também uma hipnoanálise.

Primeiro, há um enredo, uma trama complicada, com plot e subplots. Temos o descimento de Cristo da cruz, patrocinado por José de Arimateia, um homem rico que fora discípulo secreto de Jesus e que, segundo São Marcos, reclamou «ousadamente» junto de Pilatos o corpo do Messias morto: envolve-o agora num lençol muito fino para, por fim, o instalar num sepulcro lavrado na rocha. Outra das figuras representadas junto do cadáver crístico é Nicodemos, fariseu que traz para a cena quase cem libras de um composto de mirra e aloé. Este homem procurara Jesus de noite, furtivamente, para ouvir palavras escandalosas, isto é, palavras que fazem tropeçar, talvez cair: «Necessário te é nascer de novo.» Crucificado como um vulgar criminoso, é sepultado com um príncipe.

Este acontecimento detém, no agenciamento pictórico de Sequeira, um papel nodal, atando outros episódios que, na cronologia bíblica, não são coincidentes, ou síncronos: um inusitado fenómeno climático – as densas trevas do meio-dia, hora da crucificação –; os soldados romanos que lançam sortes sobre a túnica de Cristo; os sacerdotes, escribas e fariseus que, depois da hora da blasfémia, ponderam a estratégia securitária a adoptar nos dias seguintes; junto da cruz, o apóstolo João e Maria, mãe de Jesus, mutuamente confiados pelo Messias em estertor, capaz de palavras de vida ainda: «Mulher, eis aí o teu filho; [João,] eis aí tua mãe.»

Não sou capaz de determinar o quem é quem no quadro de Domingos Sequeira. Ali estão todos, afinal, do sinédrio à rua: homens e mulheres, judeus e romanos, sábios e néscios, príncipes e pedintes, justos e pecadores, vivos e mortos. O que talvez surpreenda no quadro seja uma espécie de silêncio ou rumor, quando esperaríamos uma vozearia. Alguns choram e lamentam; outros interrogam-se ou conspiram; outros ainda rezam em “línguas entalhadas como harpas”. Há talvez quem permaneça afásico – sem linguagem, sem fala – após o escândalo universal de Deus capturado pela morte. Mas à vista desarmada não há enfáticos gestos dramáticos, a eloquência lancinante da dor, mas antes uma qualquer dose de resignação, um estranho conformismo. No centro de tudo, um cadáver pasmosamente dotado de luz própria, como se diz que acontece com corpos estelares extintos, cujo brilho continua a alcançar-nos.

O quadro está repleto de pequenas histórias, algumas ignotas ou misteriosas, orbitando em torno dessa grande história, aquela que é simultaneamente um buraco negro e um luzeiro inextinguível, a história que rasgou a história do mundo em duas metades: antes de Cristo, depois de Cristo. Mas – pairando sobre tudo isto, subjazendo a tudo isto, atravessando tudo isto, como que radioactivamente – temos, assim me parece, uma tonalidade afectiva, uma atmosfera: onírica, quase narcótica, oriental. Os brasileiros usam a expressão pintou um clima, frequentemente para se referirem a situações de flirt. Domingos Sequeira pintou um clima. Else Lasker-Schüler escreveu num volume de prosa: “Sempre me esforcei por escavar, não em busca de ouro, mas em busca de Deus. Às vezes, dava com um pedaço de céu.”2


1 Else Lasker-Schüler, Baladas Hebraicas, tradução e apresentação João Barrento, Lisboa, Assírio & Alvim, 2002, p. 45.

2 Citado por João Barrento na introdução ao volume supracitado, intitulada “Saudades do Paraíso” (pp. 14-15).