![]() |
Walden |
![]() |
This Side of Paradise |
![]() |
As I Was Moving Ahead Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty |
Na introdução a The Defendant (1901) — obra em que faz a apologia dos planetas e do nonsense, passando pela heráldica, as pastoras chinesas, as coisas feias e as informações úteis –, G.K. Chesterton escarnece tanto da especulação teológica acerca da localização exacta do Paraíso como da nossa secularizada tendência para considerar o mundo «tão perdido como o Éden e tão afundado quanto a Atlântida». Para Chesterton, a grande queda da história humana, tipificada pela queda de Adão, decorre da irresistível propensão para subestimar o meio ambiente em que nos encontramos e movemos. «Muito provavelmente ainda estamos no Paraíso. Talvez só o nosso olhar tenha mudado.»
O que as três horas de Walden nos oferecem é um olhar que não mudou. Jonas Mekas ainda está no Paraíso, preservando a alegria e o espanto diante das coisas, diante do facto pasmoso de haver mundo, em vez de nada. Apetrechado com a sua Bolex, ele é o anjo que filma o princípio do mundo, um mundo em estado nascente, infantil, pletórico. Walden não nos leva para os bosques de Thoreau, mas está repleto de crianças e árvores, celebrando as cenas de rua e a passagem das estações, filmando amigos em torno de uma mesa, números de circo, a festa de um casamento. Walden é feito de clarões do Paraíso, por vezes somos encandeados pela beleza.
Que o realizador américo-lituano seja um deslocado, como tantos outros que os tumultos do mundo continuam a gerar, não ameaça esta hipótese. Mekas viu-se forçado a abandonar a terra natal, mas não foi expulso do Paraíso; ainda que, com o irmão Adolfas, tenha vivido em campos de refugiados antes de, em 1949, chegar aos EUA, o seu olhar não foi obnubilado, permanecendo intacto e disponível para a primeira vez das coisas. O olhar de Jonas Mekas não envelheceu nem envileceu. Daí que a ideia de Paraíso, há muito varrida do discurso teológico, seja tão prontamente associada ao cinema de Mekas: Fragments of Paradise (2022) é o título do documentário que K.D. Davison dedica à vida e obra do realizador, e o próprio já baptizara um filme inteiramente dedicado aos acontecimentos de 1977, organizados em torno da figura de Oona, a filha de três anos, com o título Paradise Not Yet Lost. Vinte anos depois, até o delicado close-up à família Kennedy, rodado pouco tempo após o assassínio de J.F.K., receberá por título This Side of Paradise. Um outro título de Mekas serve-nos de descrição à experiência de atravessar os planos e imagens das seis bobines de Walden como quem entra numa floresta sem medo de nela se perder: As I Was Moving Ahead Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty (2000).
Talvez num aspecto Walden se distancie da noção de Paraíso. O filme de Jonas Mekas é um diário e está cheio de época, enquanto o Paraíso desconhece o tempo. Na teologia bíblica, o Paraíso é um lugar sem tempo, anterior ao tempo, está do lado da eternidade. A personagem do Tempo dos mistérios medievais só está autorizada a entrar em cena após a Queda, após a expulsão do Paraíso, e a Morte é figurada como a «triste paridura» de Adão e Eva, irremediavelmente caídos no mundo (Gil Vicente, Breve Sumário da História de Deus, 1527). Há quem se acerque de Walden com um interesse histórico preciso, pois ele oferece um luxuriante catálogo das figuras da cultura underground na Nova Iorque da década de sessenta: Allen Ginsberg, Stan Brakhage, Gregory Markopoulos, Andy Wharol, os Velvet Underground, John Lennon e Yoko Ono, entre tantos e tantos outros, mas também aparições inesperadas, como a de Carl Dreyer, de visita aos EUA. Mas, embora Walden seja precioso para a sociologia da cultura, não nos devemos enganar: não há hierarquia entre o casal Lennon/Ono e a barata que se esforça por atravessar a rua. A mesma viva atenção, a mesma alegria anima estes planos. O filme de Mekas excede a função documental, possuindo uma vocação poética e comunicando uma contagiante energia vital: «Não estou a documentar a realidade, estou a celebrar a realidade», dizia Jonas Mekas, que sempre se recusou a falar das imagens dos seus filmes como memórias do que viveu e foi perdendo com o tempo. The past cannnot be presented, escreveu Thoreau. O realizador ambicionava emancipar do chronos todas essas imagens para as celebrar no presente em que são vistas. O deus de Mekas é o kairós — o tempo oportuno, o instante favorável —, que a teologia cristã associa ao “tempo de Deus”. É como propõe C.S. Lewis em The Screwtape Letters (1942): «O presente é o ponto em que o tempo toca a eternidade.»