17/07/2017

Fugir, regressar


Diz-se que um dos maiores prazeres de viajar consiste em regressar a casa. Incluo-me na mole que pensa molemente assim — e nem preciso de sair de casa para o sentir. As viagens de regresso são sempre mais aceleradas e ansiosas do que as viagens de ida. Há dois ou três anos, saí de Gibraltar ao pôr-do-sol, rumo ao Porto, parando apenas, por alguns minutos, em estações de serviço. O caso não chega a ser notável: alguns familiares e amigos fazem viagens bem mais longas sem outras interrupções que não as ditadas pela estrita necessidade de abastecer o depósito — o do automóvel ou o próprio. Este post é agnóstico no que toca à segurança rodoviária: é antes motivado por esse yin-yang formado pelo impulso de evasão — on the road again — e pelo desejo de regresso — take me home, country roads —, velhíssimo anel de Moebius que encontramos já na Odisseia. A dada altura, convenci-me de que esta inextricável dualidade estava especialmente presente na moderna dramaturgia norte-americana, mas, na verdade, deve tratar-se de um elemento nuclear da exangue mas assaz resiliente mitologia da América, tão marcada pela experiência do pioneirismo: o apelo da estrada e do horizonte, a desmesura da paisagem, o deserto (coisas que até a Baudrillard comoveram) e, concomitantemente, o apelo das raízes, o amor à terra natal, o anelo pela casa. Seja como for, quando estudei Eugene O’Neill, encontrei em estado de exasperação essa tensão entre o impulso de fugir e o desejo de voltar a casa, ou simplesmente de ter uma casa, isto é, um lugar a que se possa pertencer. Quando pequeno, O’Neill entretinha o tempo a desenhar barcos e depois, à semelhança do seu herói Conrad, foi viajante experimentado, até marinheiro, integrando a tripulação de um navio norueguês chamado Racine, mas a ânsia desesperada da casa tornou-se o problema nodal do seu teatro. O drama pessoal de O’Neill atingiu mesmo um ponto paroxístico: apesar de todas as evasões, não só nunca conseguiu fugir — de facto, nunca ‘saiu de casa’, nunca chegou efectivamente a ‘deixar pai e mãe’, a emancipar-se do passado — como também nunca conseguiu regressar, isto é, nunca encontrou um lugar a que pudesse dar semelhante nome: casa.