29/09/2017

«A força de um poema, quer dizer, de um crime»

Os Negros, de Jean Genet, enc. Rogério de Carvalho (TNSJ, 2006); foto João Tuna

É bem conhecida a imagem milenar de Heraclito: não nos banhamos duas vezes nas mesmas águas de um rio. Não é apenas a água que muda. Como insistia Jorge Luis Borges, nós não somos menos fluidos do que o rio. De cada vez que lemos um texto, o texto não é o mesmo. Não porque seja mudável como o livro de areia de um conto de Borges, mas porque nós não somos mais os mesmos. Talvez não exista essa coisa a que chamamos reler: ler é sempre ler pela primeira vez. (Por alguma razão, assinalamos passagens diferentes de cada vez que lemos uma obra, e frequentemente, quando voltamos a um livro há muito lido, não somos mais capazes de discernir o motivo que nos levou a sublinhar este ou aquele passo.)
Em 2017, Rogério de Carvalho lê pela primeira vez Os Negros, depois de ter lido a peça há mais de trinta anos, quando encenou esta macabra clownerie no Teatro do Século, com um elenco constituído por actores brancos, pervertendo a regra e a ordem de Saint Genet, para citar o título do famigerado estudo de Sartre. O encenador leu-a também em 2006 no palco do Teatro Nacional São João, em condições de produção radicalmente distintas e com um elenco que agregava actores de «um belo negro lustroso»: angolanos, moçambicanos, um são-tomense, uma cabo-verdiana e portugueses de ascendência africana. Entre a primeira encenação e a derradeira — aquela que agora se apresenta aos espectadores do São Luiz (5-15 de Outubro) —, não há progresso. Quer dizer: as três encenações não representam necessariamente estádios de uma evolução, etapas da decifração progressiva de um enigma, mas formas distintas de organizar o escândalo, o jogo, a cerimónia, o delírio, a possessão. Sabe-se agora mais, mas é preciso aprender tudo de novo. Com textos como Os Negros — textos que possuem «a força de um poema, quer dizer, de um crime» (Genet) — nunca se volta a casa, mas a um lugar onde se permanece um estranho. O texto já não é o mesmo que Rogério de Carvalho leu há trinta, ou mesmo há dez anos. O leitor não é o mesmo. Nós, espectadores, não somos os mesmos.

Excerto de «Missa en abyme», texto escrito para a folha de sala de Os Negros, de Jean Genet, enc. Rogério de Carvalho (São Luiz Teatro Municipal, Outubro de 2017). Agradeço a Aida Tavares mais este amabilíssimo convite.